Então, para não deixar passar de todo em branco, repito, sete anos depois, as mesmas palavras escritas naquela ocasião. Se pelo menos um leitor se der ao trabalho de ler já me darei por satisfeito. Algumas correções, no entanto são necessárias. Uma delas é que já não é mais um netinho, e sim dois. Trinta, não: 37. Vamos ao texto.
Nesta segunda-feira (3 de janeiro de 2005) completam-se 30 anos que eu e a Eliana dissemos o tradicional sim, da forma mais solene possível, diante da juíza da paz. União que nos rendera três filhas – a caçula, com 20 anos de idade – e um netinho de quase três meses. Mesmo não querendo ser nostálgico, três décadas são, pode-se dizer, uma vida. Noel Rosa (1910-1937), um dos ícones da música popular brasileira, até hoje lembrado na discografia nacional, teve passagem bem menos longeva. Cantou para subir aos 27 anos de idade.
Vinte e sete anos, aliás, é a idade-problema para compositores, especialmente de rock internacional. Ultrapassá-la é como ganhar na loteria – para eles.
Trinta anos a dois seriam sessenta. Muito tempo mesmo. E isso, invariavelmente, remete-nos a uma reflexão sobre o que tudo isso encerra. O que representa para nós como família e, principalmente, quais as lições de vida que podemos tirar e, quem sabe, não sendo tão imodestos assim, passar a outras pessoas como exemplo.
Um menino de 20 anos, magérrimo (1,70m, 54 quilos), cheio de sonhos, embalado pelo movimento Tropicália, decide sair de sua terra, Porto Velho, rumo à Bahia de Todos os Santos. Era lá que as coisas aconteciam àquela altura. O ano, 1974. Só que escolhera o caminho errado. Ao invés de descer, via Cuiabá, pela então sofrível BR-364, decidiu armar sua rede num “batelão”, barco que cruza o espaço fluvial entre Porto Velho e Manaus. Viagem sofrida. Quem decide embarcar nessa aventura, descobre o que significou o banzo para os escravos embarcados nos navios negreiros. Algo, aliás, familiar para este autor, que, diga-se de passagem, é negro.
Em Manaus, de imediato encontrou emprego. Foi “fichado” nos Correios. Como radiotelegrafista. Piripipi de profissão. Designado para servir em Boa Vista, desembarcava no Aeroporto Internacional um mês depois. Sem tostão no bolso, depois de passar fome em Manaus – mais pela ingenuidade que pela falta de recursos. Chegava para assumir o emprego na agência local dos Correios. Era o dia 30 de abril daquele longínquo 1974. O general Ernesto Geisel – linha dura – assumira a presidência da República havia 15 dias.
O trajeto do Aeroporto à agência dos Correios foi verdadeira odisseia. Esperava chegar e encontrar um carro amarelo com detalhes em azul, da ECT, no qual pegaria gloriosa carona. Assim, aportaria triunfalmente em seu novo posto de trabalho. Qual nada! Espera, espera... tudo em vão. O carro dos Correios nada de aparecer. Como todo o então território federal abrigava um pouco mais de 70 mil habitantes, o número de carros, então, contava-se nos dedos. Até que saiu o último, deixando o aeroporto deserto. Decidi, então, perguntar a um remanescente funcionário a que horas o carro dos Correios viria pegar os malotes e demais encomendas. A resposta, mais decepcionante ainda:
– Os Correios não têm carro, não. Toda a bagagem já foi, ali, naquela caminhonete.
Não preciso falar que desabei com a resposta.
Sem conhecer a cidade, a única solução encontrada foi ficar jururu, segurando a mala, à espera de um milagre. Que realmente aconteceu. Uma pessoa influente da sociedade local decidiu chegar atrasado para pegar parente que chegava de Belém. Vendo-me na situação de completo abandono, sentado num canto da calçada do “majestoso” prédio do Aeroporto, perguntou-me se não queria uma carona. Era como se perguntasse a macaco se queria banana. Enfim, cheguei ao prédio dos Correios. Era outro, menos imponente que o atual. Mas dispunha de acomodações suficientes para todo o serviço que prestava à comunidade e ainda sobravam cômodos apelidados de apartamento de funcionários. Todos de outros estados.
A falta que a família paterna deixada em Porto Velho lhe fazia foi fatal. Provoca-lhe o banzo – doença de negro cativo. Eliana foi a primeira namorada encontrada na terra de Makunaima. O primeiro encontro aconteceu em julho daquele ano. No dia 3 de janeiro seguinte, seis meses depois, lá estávamos os dois, nervosos, diante da juíza de paz, dizendo o “sim”, lançando-se nessa aventura desconhecida que era a vida a dois.
Natural. Tudo que começa precisa passar por ajustes. Muitas vezes doloridos. E conosco não foi diferente. Andamos nos arranhando um bocado. Mas as vicissitudes não foram capazes de quebrar o elo que nos unia. Hoje, entendemos que esses dissabores foram providenciais. Tiveram como objetivo ajudar na coesão que nos uniu e ainda nos une, a qual nem mesmo o passar dos anos, das décadas, conseguiu arrefecer.
Não estou dizendo aqui que entre nós hoje “tudo saia como um som de Tim Maia”. Ainda temos nossos arranca-rabos. De menor intensidade, é claro. Não chegam a provocar nenhum tsunami. Isso, porque o tempo nos levou a descobrir nossos códigos próprios para superar as adversidades.
Colocando na ponta do lápis, nossa convivência já atravessa nada menos que 259 mil e 200 horas, considerados, é claro, os pequenos lapsos involuntários. Nada superior a mais que dois meses de separação. Sempre causados por motivo de trabalho. Apesar de insignificantes, esses períodos de distanciamento físico (não espiritual) serviram para fortalecer a certeza de que, como diz a Bíblia, éramos – e somos – os dois uma só carne.
Esses 15 milhões e 552 mil segundos que desfrutamos da convivência um do outro foram suficientes para nos fazer experimentar os mais variados sentimentos. Uns bons, outros nem tanto. Mas todos imprescindíveis para sedimentar, dia após dia, essa construção de vida a dois, a ponto de um não suportar a ausência do outro por muito tempo.
Agora, entendemos o que Vinícius de Morais, o saudoso “Poetinha”, quis dizer com o seu decantado “Soneto da Fidelidade”. Sabemos que o amor mútuo que experimentamos outrora e continuamos a experimentar, cultivando-o dia após dia como uma débil e sequiosa plantinha, não será eterno, “posto que é chama”. Mas, quando a noite chegar para um dos dois, o que ficar, ainda que experimentando a insuportável dor da solidão, poderá dizer, sem sombra de dúvida:
- Foi infinito enquanto durou.
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