terça-feira, 31 de julho de 2012

Proposta modesta: vamos comer as nossas crianças

Por Frei Betto
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É objeto de tristeza, para quem anda por esta grande cidade ou viaja pelo interior, ver ruas, estradas e portas de casebres apinhadas de mendigas seguidas de três, quatro ou seis crianças esfarrapadas, importunando os passantes com pedidos de esmolas. Essas mães, incapazes de ganhar a vida com trabalho honesto, são obrigadas a gastar todo o seu tempo a vagar a esmo, implorando o sustento de seus desvalidos filhinhos que, ao crescerem, tornam-se ladrões por falta de trabalho. (...)

A questão portanto é: como essas crianças serão criadas e sustentadas? (...) Essas crianças raramente conseguem ganhar a vida roubando antes dos seis anos de idade, excetuando os extraordinariamente precoces. (...) Foi-me informado por um americano de grande saber, que faz parte de meu círculo de amizades em Londres, que uma criancinha sadia e bem alimentada é, com um ano de idade, um alimento dos mais deliciosos, nutritivos e saudáveis, quer ensopada, assada ou cozida, e não tenho dúvidas de que ela poderá também ser preparada como fricassé ou ragu. (...)

Uma criança dará para dois pratos no caso de um jantar para amigos e, numa refeição em família, os quartos dianteiros e traseiros serão suficientes para a preparação de um prato razoável que, se temperado com sal e pimenta, poderá ser aproveitado no quarto dia como um ótimo cozido, especialmente no inverno. (...)

Reconheço que esse alimento será um tanto caro e, desse modo, muito adequado para os proprietários de terras, os quais, já tendo devorado a maioria dos pais, são os que têm mais direito sobre os filhos. A carne da criança poderá ser encontrada o ano todo, com maior abundância em março. (...) Aqueles que forem mais econômicos (como reconheço que os tempos atuais o exigem), poderão esfolar a carcaça cuja pele, artificialmente preparada, se prestará à confecção de admiráveis luvas para senhoras e botas de verão para cavalheiros refinados.

Quanto às nossas cidades, poder-se-á estabelecer matadouros para este propósito nas áreas mais convenientes; e podemos assegurar que açougueiros não faltarão, embora eu raramente recomende que as crianças sejam compradas vivas e preparadas imediatamente após o abate, como o fazemos com o porco assado. (...)

A falta de carne poderia muito bem ser suprida pelos corpos de jovens rapazes e raparigas com idade não superior a quatorze anos nem inferior a doze, tamanho o número de crianças de ambos os sexos em todas as regiões que estão morrendo de fome por falta de trabalho e ocupação. Isso, é claro, a critério de seus pais, se vivos, ou, caso contrário, de seus parentes mais próximos. Mas, com a deferência devida a um amigo tão excelente e um patriota tão digno, não posso estar de pleno acordo com suas idéias. Isso porque, quanto aos machos, meu amigo americano assegurou-me, a partir de experiência freqüente, que a carne dos mesmos era geralmente dura e magra, devido aos contínuos exercícios, e que seu sabor era desagradável, e engordá-los não resolveria o problema. Quanto às fêmeas, isso seria, eu creio, com humilde submissão, uma perda para o público, pois elas próprias logo se tornariam reprodutoras; além disso, não é improvável que algumas pessoas escrupulosas poderiam vir a censurar tal prática (embora muito injustamente) como sendo um tanto cruel, o que, eu confesso, sempre foi para mim a mais forte objeção contra qualquer projeto, por mais bem intencionado que fosse. (...)

Algumas pessoas de espírito desalentado sentem grande preocupação com o imenso número de pobres que são velhos, enfermos ou aleijados e têm-me solicitado que eu empregue meus pensamentos em descobrir que caminho tomar para aliviar a nação de um ônus tão penoso. Mas essa questão não me causa a menor preocupação, pois é fato sabido que essas pessoas estão, a cada dia, morrendo e apodrecendo, por causa do frio e da fome, da imundície e dos vermes, tão rápido quanto se possa esperar. Quanto aos jovens trabalhadores, eles estão agora em condições quase tão promissoras quanto essas: eles não conseguem trabalho e, conseqüentemente, definham por falta de alimento, a tal ponto que, se a qualquer momento forem porventura contratados para o trabalho comum, não terão forças para executá-lo. E assim o país, e eles próprios, estão bem próximos de serem salvos dos males que virão. (...)

Esse alimento traria igualmente grande clientela para os hotéis, onde os cozinheiros certamente teriam a prudência de tentar obter as melhores receitas para o seu perfeito preparo; em conseqüência, teriam seus estabelecimentos freqüentados por todos os finos cavalheiros que se orgulham de seus conhecimentos na arte de comer bem, e um cozinheiro habilidoso, que sabe como satisfazer seus fregueses, inventará maneiras de cobrar por esses pratos o que ele quiser e bem entender. (...)

Veríamos em breve mulheres casadas disputando honestamente qual delas poderia trazer ao mercado a criança mais gorda. Os homens tornar-se-iam tão afetuosos para com suas mulheres, durante a gravidez, como o são agora para com suas éguas e vacas prenhes ou suas porcas prestes a parir; não as espancariam ou chutariam (prática, aliás, muito freqüente) com medo de um aborto.

Muitas outras vantagens podem ser enumeradas. Por exemplo, o acréscimo de algumas milhares de carcaças a nossas exportações de carne de gado em barris, a propagação da carne suína e o aperfeiçoamento de se fazer toucinho de boa qualidade, do qual estamos tão necessitados devido ao grande extermínio de porcos —tão freqüentes em nossas mesas, mas que, de modo algum, se comparam, em sabor ou magnificência, a uma gordinha criança de um ano que, assada inteira, fará bela figura numa recepção oferecida pelo senhor prefeito ou qualquer outra comemoração pública. Deixo de mencionar muitas outras vantagens, pois aprecio a concisão.

Supondo que mil famílias desta cidade venham a ser consumidoras freqüentes de carne de criança, fora outras que a comeriam em ocasiões festivas, especialmente casamentos e batizados, calculo que o consumo (...) poderia chegar a vinte mil carcaças por ano. (...) Não consigo pensar em objeção alguma que possa vir a ser levantada contra esta proposta. (...) Portanto, que não me venham falar de outros expedientes: de tributar nossos proprietários de terras que, delas ausentes, somente lhes aufere os lucros. (...)

Desejo que os políticos, a quem desagrada minha iniciativa, e que talvez tenham a ousadia de tentar discuti-la, perguntem antes aos pais desses mortais se eles hoje não considerariam uma grande felicidade terem sido vendidos como comida na idade de um ano, da forma que ora proponho, e desta maneira evitado a perpétua sucessão de desgraças pela qual tiveram que passar, devido à opressão dos proprietários de terras, à impossibilidade de pagar o aluguel, sem dinheiro nem ofício, à falta dos meios de subsistência mais básicos, teto e roupas para abrigá-los das inclemências do tempo e à perspectiva inevitável de legar à sua prole misérias semelhantes ou ainda maiores.

Declaro, com toda sinceridade de meu coração, que não sou movido pelo menor interesse pessoal ao tentar incentivar essa tão necessária tarefa, não tendo outro motivo senão o bem público de meu país, através do progresso de nosso comércio, do cuidado de nossas crianças, do alívio para os pobres, dando também algum prazer aos ricos. Não tenho filhos, através dos quais possa lucrar um só centavo.

(O texto acima, reproduzido com alguns cortes, mas sem adição, é obra de Jonatham Swift (1667-1745), que o escreveu em 1729. Este autor satírico de língua inglesa é, também, autor de As Viagens de Gulliver.)

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