Por Reinaldo Azevedo
O
voto desta quinta-feira do ministro Ricardo Lewandowski é a evidência
escancarada de um Supremo Tribunal Federal infiltrado pelos interesses
partidários mais mesquinhos – e pouco me importa se ele tem ou não a
carteirinha do partido. Lewandowski é a prova de que, por meio do regime
democrático, é perfeitamente possível promover a depredação das
instituições, o seu rebaixamento, a sua desqualificação. Afinal, o
presidente da República tem o poder de indicar o candidato ao Supremo.
Ao Senado cabe sabatiná-lo e aprová-lo ou rejeitá-lo. Se o chefe do
Executivo decide escolher um mero esbirro de um projeto político e se os
senadores se comportam como despachantes do Palácio, toma assento na
corte suprema do país o serviçal de um partido ou de um grupo. Como
impedir que isso aconteça? Entregar a indicação a corporações de ofício
também não é uma boa saída. Não há outro caminho: também nesse caso, só a
vigilância democrática é eficaz – dos cidadãos, da imprensa, dos
advogados, das pessoas de bem. “Ah, lá está o Reinaldo desqualificado o
Lewandowski só porque não votou como ele queria…”
Quem
acredita nisso não deixará de acreditar se eu disser que é mentira,
certo? Logo, não quero papo com essa gente. Se há coisa que eu não faço é
tentar convencer do contrário quem me detesta. Eu acho que o mundo fica
bem com a diversidade… Adiante! O problema não está no voto “sim” ou
“não” de Lewandowski, mas na qualidade de seus argumentos, na
sem-cerimônia com que despreza os fatos, na arrogância – vênia máxima –
meio ignorantona com que tem se conduzido no tribunal.
É bem verdade que ele já tentou enveredar pela Antiguidade Clássica e levou uma sandaliada
do sapateiro quando atribuiu a Fídias uma frase dita por Apeles. É bem
verdade que ele já havia maltratado Ortega y Gasset de maneira
miserável, transformando o filósofo espanhol numa espécie de naturalista
de meia-tigela. É bem verdade que ele não se saiu melhor quando apelou a
Kafka… Não tendo evoluído nem com brilho nem com graça no mundo da alta
cultura, Lewandowski houve por bem ser tosco, como se seus pares e nós
mesmos, que acompanhamos o julgamento, não estivéssemos à altura do que
ele guarda de melhor. Ocorre que ele não guarda nada de melhor. Como
sabe Apeles. Como sabe Ortega y Gasset. Como sabe Kafka. Desqualificar
uma convicção alheia como “coisa de Papai Noel” ou sugerir que seus
colegas de tribunal são cegos a tatear partes de um elefante são
posturas grosseiras, sim, mas próprias de quem não tem mais nada a
oferecer.
Então Delúbio era o chefe do PT?
Entende-se agora por que Lewandowski, secundando Márcio Thomaz Bastos, opôs-se com tanta energia ao fatiamento do julgamento. Do modo como Joaquim Barbosa conduziu o seu voto, as escolhas têm de ser feitas à luz do dia, segundo a exposição escancarada dos fatos. O que o ministro fez nesta quinta-feira, ao inocentar com tanta energia e dedicação José Genoino e José Dirceu, foi transformar o ex-tesoureiro Delúbio Soares em chefe máximo do partido. Quem? Este senhor é incapaz de administrar a própria reputação – já que sempre se oferece para ser o cobre de plantão de colegas mais graúdos… Imaginem se poderia ser ele o Dom Corleone do petismo… Trata-se de uma piada grotesca.
Como
esquecer aquela histórica participação de Delúbio Soares na CPI do
Correios, em que parecia estar pra lá de Bagdá, incapaz de dizer coisa
com coisa? Ou não achei, ou os vídeos desapareceram do YouTube. Era ele o
chefe??? Não! Lewandowski sabe que o tesoureiro cumpria as ordens que
lhe dava a cúpula do partido: Lula, Dirceu e José Genoino. Mas aí o
coração supostamente garantista de Lewandowski é tomado por um enxurrada
de emoções, e ele pergunta, afetando candidez: “Onde estão as provas
contra José Dirceu e José Genoino?”.
Bem, no
caso de Genoino, há até recibo assinado – um contrato. Não serve para
Lewandowski porque, diz ele, assinar os tais empréstimos era próprio da
função do então presidente do PT. Certo! Mas também estava entre as suas
atribuições endossar empréstimos fajutos, que jamais existiram? Ou o
ministro acredita que foram legais? Se acredita, por que, então,
condenou o núcleo banqueiro? “Ah, mas Genoino não sabia…” Digamos que
não… Então alguém sabia! Dirceu, ora vejam, também ignorava tudo. Quando
o ministro acha por bem, ele pergunta: “Cadê o papel com assinatura?”;
quando lhe dá na veneta (uma veneta com método!), no entanto, ele
proclama: “Esse papel era parte das atribuições do meu cliente…” –
ooops! “Do réu”, eu quis dizer. A depender de quem seja, Lewandowski ou
absolve por haver papel ou absolve por não haver papel.
Não que
fosse um despropósito um partido como o PT ter como seu chefe máximo um
tesoureiro. Faria um sentido danado. Mas os fatos demonstram ser essa
uma mentira escandalosa. O próprio Delúbio já andou dizendo por aí que a
sua eventual prisão é uma espécie de missão partidária. Ora, devagar
com o andor, senhor Lewandowski! A teoria do “domínio do fato” não se
confunde com a responsabilidade objetiva – até porque, no que concerne a
Dirceu, nem mesmo chefe do partido ele era! Trata-se de juntar as peças
do quebra-cabeça, a partir do conjunto de indícios, para concluir,
afinal, quem tinha o comando da máquina partidária – além de seu
presidente, que era José Genoino.
Mas não
seremos tão cruéis a ponto de forçar Lewandowski a chegar ao óbvio com
base na pura lógica. Não! Contra Dirceu há depoimentos – os líderes
partidários dizem que qualquer acordo tinha de ser referendado por ele –
e há os fatos: as reuniões com a cúpula do Banco Rural, em companhia,
calculem, de Marcos Valério (por quê???) e Delúbio Soares.
É patético
que o ministro se esconda atrás de um suposto apego ao garantismo para
ignorar a realidade. O garantismo que permite a impunidade é falácia. Os
que se dizem adeptos dessa corrente estão é em busca de Justiça, não o
contrário. Então Lewandowski condena por corrupção passiva um Roberto
Jefferson, que admite ter recebido uma mala de dinheiro para distribuir
aos petebistas, mas absolve Dirceu, que foi quem costurou aquele acordo,
fundado sobre aquelas bases, a saber: dinheiro? Ou o ministro tentará
nos convencer de que a “autoridade” petista com quem Jefferson negociava
era… Delúbio? Por quem nos toma Lewandowski?
“O
depoimento de Jefferson não vale; ele também é réu!” Sim, é, mas é um
réu que se autoincriminou e que tinha ciência do que estava fazendo – é
advogado. Mas não! Não é preciso recorrer ao que Jefferson diz de Dirceu
para chegar à culpa do comissário. Kátia Rabello, narrando seus
encontros com o então chefe da Casa Civil, consegue ser muito mais
eloquente.
Concluindo
Um ministro está prestes a assumir a vaga aberta com a saída de
Cezar Peluso. No mês que vem, outro assento se torna vago, com a
aposentadoria de Ayres Britto. Por enquanto, pela maioria folgada de
seus integrantes, temos e vemos um Supremo Tribunal Federal que honra a
sua independência. Lewandowski, no entanto, é a evidência que aquela não
é uma Casa imune a interesses que podem orbitar fora da Constituição e
dos códigos legais.
Ou a gente diz isso a tempo, com todas as letras, ou, como diria Camões, um dia o dano pode ser maior do que o perigo.
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