sexta-feira, 7 de março de 2014

De saga familiar e rabo de porco



Por Francisco Espiridião 

Acabo de acabar de ler uma das obras mais impressionantes que já tive sob meus olhos nestas décadas de vida. A saga dos Buendia, parida pelo laureado escritor colombiano Gabriel García Marquez nos idos dos anos 1960. A obra tem um enredo que, dizendo, não se tem como acreditar que tudo possa ter nascido na imaginação de uma só pessoa.

“Cem anos de solidão” encerra um intrincado conjunto de atitudes, formado por cenários humanos, alguns efetivamente vivenciados, outros, factíveis apenas no mundo virtual. Mesmo fantasmagóricos, são fortes a ponto de imprimir credibilidade aos relatos.

Ao final, esse conjunto compõe peça única, onde todas as peculiaridades se encaixam como luva, numa sincronia verossímil a ponto de mostrar quão infinitas são as facetas do ser humano, que, já dizia Soren Kierkegaard (1813-1855), é inviável.

Toda a trama começa com o casamento de José Arcádio Buendia com a prima Úrsula Iguaran. Espantados pela lenda de época, de que o casamento entre parentes próximos gerava filhos que nasciam com rabo de porco, por um longo período permaneceram sem consumar de fato o enlace. Uma gracinha sobre esse assunto gerou um dos fantasmas a acompanhar os homens da família ao longo das gerações.

Para fugir dess... bem, não vou aqui querer tirar o prazer de quem se disponha a se aventurar pelas 447 páginas de puro delírio contando aqui tintim por tintim a saga dos Buendia. Por isso, prefiro continuar essa crônica contando algumas passagens que me deixaram a pensar. Sim, o livro faz qualquer leitor vestir a carapuça das personagens, ainda que em algum momento da vida.

Aliás, um dos personagens que mais me impressiona em toda a obra é Petra Cotes. Aparece lá pelo meio da obra, mas, a partir daí, torna-se personagem "hors concours". Impossível se desvencilhar dela. Mulher que nasceu para ser amante. Não qualquer amante, daquelas que buscam apenas se beneficiar do parceiro como se carrapato, parasita fossem.

Petra Cotes viu o amado casar-se com outra, e teve a paciência e a grandeza de esperar, em seu canto, o momento certo de poder desfrutar as benesses da convivência de Aureliano Segundo. Quando este morre, Petra Cotes passa a suprir com uma cesta de alimentos a cada semana, a viúva do amado. Muitas vezes isso ocorre com o sacrifício de sua própria provisão.

Para não desnudar muito o enredo, quero aqui frisar que a saga, que teve início com o amalucado e sonhador José Arcádio Buendia e a prima Úrsula, mulher forte, matrona das boas, longeva, mais de 150 anos de vida, vai se passar praticamente toda em um povoado que nasce do nada, dos devaneios do marido, vive dias de glória e, acaba como começou: no nada.

Enfim, “Cem anos de solidão” mostra que a literatura é “o melhor brinquedo que já inventaram para zombar das pessoas”. Algo parecido com o que dizia o sábio catalão: “A sabedoria não vale a pena se não for possível servir-se dela para inventar uma maneira nova de preparar os grãos-de-bico”.

E os descendentes com rabo de porco, hein? Existiram de verdade ou foi apenas um referencial para expulsar os patriarcas da família Buendia para a Macondo do antedilúvio? No clã, ao longo das gerações, onde os meninos eram batizados como José Arcádio ou Aureliano, e as meninas, Amaranta, tinha mesmo de aparecer um dia o tal rabo de porco. Ou não. Confiram. Vale a pena.


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