Por Demétrio
Magnoli
Lula sabe
mais que os "intelectuais progressistas" reunidos em seu instituto
para, nas palavras do assessor Luiz Dulci, "definir um plano de trabalho
para o desenvolvimento e integração" da América Latina. Há muito reduzidos
à condição de intelectuais palacianos, os convidados celebraram os
"avanços" na integração regional e a miraculosa clarividência do
ex-presidente. O anfitrião, contudo, pediu-lhes algo diferente da bajulação
habitual: a formulação de uma "doutrina" da integração
latinoamericana.
No 11° ano
de poder lulista, o pedido traz implícito o reconhecimento de um fracasso
estrondoso de política externa - e da crise regional que se avizinha. "Não
tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar a primeira ponte entre
Brasil e Bolívia; não tem explicação, depois de mais de 500 anos, eu inaugurar
a primeira ponte entre Brasil e Peru", proclamou o ex-presidente, sem ser
corrigido por nenhum dos intelectuais que decoravam o ambiente.
O trem
inaugural da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré chegou a Guajará-Mirim em abril de
1912. Os presidentes Café Filho e Paz Estenssoro inauguraram a Estrada de Ferro
Brasil- Bolívia, em Santa Cruz de La Sierra, em janeiro de, 1955. A Ponte da
Amizade, sobre o Rio Paraná, uma ousada obra de engenharia, foi inaugurada em
1965, conectando o Paraguai às rodovias brasileiras e ao Porto de Paranaguá.
As pontes
que Lula inaugurou estavam previstas na Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), aprovada na conferência de
chefes de Estado de Brasília, em 2000, no governo FHC. De lá para cá, sob o
lulismo, integração regional converteu-se em eufemismo para alianças políticas
entre governantes "progressistas".
Desde 2003,
com a nomeação de Marco Aurélio Garcia como assessor especial da Presidência, a
política brasileira para a América Latina foi transferida da alçada do
Itamaraty para a do lulopetismo, impregnando-se de reminiscências políticas
antiamericanas, terceiro-mundistas e castristas. O coquetel conduziu-nos ao
impasse atual, que Lula é capaz de identificar mesmo se tenta disfarçá-lo pelo
recurso à bazófia autocongratulatória.
A
"Doutrina Garcia" rejeita a ideia de livre-comércio, que funcionou
como pilar original do Mercosul. A Argentina dos Kirchners aproveitou-se disso
para violar sistematicamente as regras do Mercosul, desmontando o edifício da
zona de livre-comércio. No seu instituto, Lula denunciou a "preocupação
maior de relação preferencial com os EUA ou com a Europa ou com qualquer um,
menos entre nós mesmos". Entretanto, na celebrada última década, a América
Latina não aprofundou o comércio intrarregional, limitando-se a estabelecer uma
"relação preferencial" com a China, que absorve nossas exportações de
commodities. O primitivismo ideológico impede até mesmo a conclusão de um
tratado comercial Brasil-México, elemento indispensável em qualquer projeto de
integração latinoamericana.
A
"Doutrina Garcia" acalenta a utopia de uma integração impulsionada
por investimentos estatais e de grandes empresas financiadas por recursos
públicos. Contudo a estratégia de expansão regional do "capitalismo de
Estado" brasileiro esbarrou nas resistências nacionalistas de argentinos,
bolivianos e equatorianos, que assestaram sucessivos golpes em negócios
conduzidos pela Petrobrás e por construtoras beneficiadas por empréstimos
privilegiados do BNDES. Numa dessas amargas ironias da História, o espectro do
"imperialismo brasileiro" reemergiu como acusação dirigida por
líderes latinoamericanos "progressistas" contra o governo
"progressista" de Lula.
A
"Doutrina Garcia" almeja promover a liderança regional do Brasil,
preservar o regime autoritário cubano e erguer uma barreira geopolítíca entre
América Latina e EUA. Em busca da primeira meta, o Brasil colidiu com as
pretensões concorrentes da Venezuela de Hugo Chávez, que criou a Aliança
Bolivariana das Américas (Alba). A concorrência entre o lulopetismo e o
chavismo paralisa a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), esvaziando de conteúdo
suas reuniões de cúpula.
Em busca das
outras duas metas, que compartilha com o chavismo, o Brasil ajudou a converter
a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) numa ferramenta
de proteção da ditadura castrista e de desmoralização da Carta Democrática da
Organização dos Estados Americanos (OEA). Dias atrás, Cristina Kirchner definiu
a ascensão de Cuba à presidência rotativa da Celac como o marco de "uma
nova época na América Latina". Ela tem razão: é o fim da curta época na
qual os Estados da região levaram a sério seus proclamados compromissos com os
direitos humanos e as liberdades públicas.
Distraídos,
os intelectuais palacianos nada perceberam, mas a falência da "Doutrina
Garcia" foi registrada no radar de Lula. De um lado, abaixo do celofane
brilhante da Unasul e da Celac, desenvolve-se um processo que deveria ser
batizado como a desintegração da América Latina. A principal evidência disso se
encontra na emergência da Aliança do Pacífico, uma área de livre-comércio
formada sem alarido por México, Colômbia, Chile e Peru, aos quais podem se
juntar o Panamá e outros países centroamericanos. De outro, lenta, mas
inexoravelmente, desmorona a ordem castrista em Cuba, aproxima-se uma incerta
transição na Venezuela chavista e dissolve-se o consenso político kirchnerista
na Argentina.
Quando clama
por uma nova "doutrina" da integração latino-americana, o
ex-presidente revela aguda consciência da encruzilhada em que se colocou a
política externa brasileira. A consciência de um problema é condição
necessária, mas não suficiente, para formular suas possíveis soluções. Lula e
seu cortejo de intelectuais não encontrarão uma "doutrina" substituta
sem lançar ao mar o lastro de anacronismos ideológicos do lulopetismo. Isso,
porém, eles não farão.
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