quarta-feira, 22 de maio de 2013

Estupidamente correto.



Por Moacir Japiassu
 
Maus redatores costumam desenvolver maus hábitos e dentre esses o de iniciar suas matérias assim: Cena I… Trata-se de dolorosa indigência estilística mas, como o assunto deste artigo é igualmente andrajoso, peço licença ao considerado leitor para começar logo com duas dessas penúrias.

Cena I – Redação da Folha de S. Paulo, nalgum dia de 1995. Em plena concentração criadora, a redatora Antonomásia de Assis escrevia um texto qualquer quando foi interrompida por um negro alto, de óculos, muito bem vestido. “Eu queria falar com Anacoluto, ele está?”, quis saber o visitante. O procurado só iria chegar mais tarde e então ela escutou: “Por favor, diga a ele que Pleonasmo da Sinérese esteve aqui e telefona mais tarde, sim?” Ela respondeu “sim” e mergulhou novamente na arquitetura da matéria.

Mais tarde, quando Anacoluto chegou, perguntou: “Alguém me procurou?” Antonomásia sentiu que estava diante de um grave problema. A moça fez o gesto de quem vai falar alguma coisa, empalideceu e emudeceu. Na verdade, esquecera o nome do visitante e não ficava bem dizer que um negro, um preto, talvez um crioulo, quem sabe um negão, havia procurado Anacoluto. Antonomásia permaneceu em silêncio e seu chefe não recebeu o recado deixado por Pleonasmo da Sinérese.

Cena II – Na quinta-feira (14/4), uma leitora de minha coluna no Comunique-se escreveu-me a seguinte mensagem: “Japiassu, estou triste com você!!!!! Adoro suas ironias, mas hoje as achei muito preconceituosas. O que houve para você ter esse acesso de machismo?Então dois homens não podem andar juntos e um futuro rei não pode amar uma mulher feia? Desculpe, mas hoje você pisou feio na bola….”

Ora, em meio a uma anedota, eu havia escrito que a mulher do príncipe Charles era um canhãoe não é possível que alguém ache dona Camilla um tipo de beleza; outra notinha da coluna se referia à veadagem que assola o país, mas tratava-se também de um inofensivo chiste.


Apoio da imprensa

Os dois exemplos, aquele que vitimou a pobre Antonomásia e este outro que me deixou perplexo, apontam para o perigoso caminho que começa na encruzilhada formada pela ignorância, a burrice e a covardia e, pelo menos por enquanto, ninguém sabe aonde vai acabar. Refiro-me ao comportamento politicamente correto, cuja tonalidade mais cinzenta passei a chamar de estupidamente correto, tão formidável é a obtusidade córnea dos milhares, milhões, talvez bilhões que o adotaram como padrão de vida.

É impossível sabermos hoje quem ou o que inaugurou este circo de horrores. Não importa, todavia, porque a idéia original foi rebordada inúmeras vezes e, na multiplicação do monstruoso festival de besteiras, recebeu os vidrilhos, paetês e miçangas de uma verdadeira plêiade de cretinos espalhada pelo mundo afora. O comportamento estupidamente correto é, na verdade, uma tentativa de desumanizar as pessoas, porque o considerado e bem informado leitor há de concordar com o articulista: existem características mais humanas do que a violência, a falta de respeito, a sacanagem, a traição, a mentira, o crime em todas as suas formas, o racismo deslavado, o preconceito mais arraigado? Pois querem nos “purificar” à força, por intermédio do patrulhamento de que a classe média é useira e vezeira, além de medidas antidemocráticas promovidas por um governo caolho.

Vamos acabar com o preconceito e o racismo? Então é bom botar o zagueiro argentino Desábato na cadeia, por chamar Grafite de macaco, pois está neste risível incidente o melhor exemplo para enquadrar os jogadores de futebol, a torcida e, de quebra, a nação. A violência urbana não resistirá à cruzada de movimentos como “Sou da Paz” e “Viva Rio”, que recebem apoio incondicional da chamada grande imprensa para divulgar falsas estatísticas e assim obter respaldo para “desarmar” a população, enquanto a bandidagem recebe artefatos de guerra por meio do contrabando, esta verdadeira instituição nacional.


Carnaval de sandices

Tudo é preconceito neste miserável país que também acredita na “inclusão social” mediante cotas para as “minorias”. Não se pode mais rir, nem mesmo de si próprio. Eliminamos de nossa paisagem as mulheres feias, das quais não se pode mais falar; as gordas viraram “fofinhas”; não existem débeis mentais, nem mesmo os que nos governam, porque estes, ao lado de cegos e aleijados, são agora “portadores de necessidades especiais”. No império do eufemismo em que se travestiu o país, descobriu-se ainda que veadagem é uma “orientação sexual”, como se o futuro ex-machão tivesse nascido igualzinho ao Bussunda e só depois de grandinho tivesse botado as mãos nos quadris e exclamado: “Quer saber?! Agora vou dar até cair morta!…”

Ao mesmo tempo, ninguém dá a mínima para os velhos que também são gordos, carecas e baixinhos. Esta é a dolorosa porém real descrição do articulista, que pretende iniciar um movimento de desagravo à desprezada “categoria”; afinal, não existe, em nenhum anúncio de televisão, aquela jovem e maravilhosa mulher que nos seduz para uma noitada regada à bebida da moda e mais as fantasias sexuais deixadas en passant. Isso é preconceito ou não é? Cadê a cota televisiva para nós da geração Viagra?!?!?!

Enfim, só falta uma cena para completar o carnaval de sandices que nos assola a paciência: o presidente Lula precisa pedir perdão aos índios e lhes devolver duma vez este país de merda, se me permitem o justo desabafo.

[Esclareço que o país propriamente dito não tem culpa; trata-se, como todos sabemos, daquele impávido colosso deitado eternamente em berço esplêndido. Todavia, o que fizeram e fazem dele a cada dia, nos enoja e entristece.]

(Publicado em 26/04/2005 na edição 326, do Observatório da Imprensa.)

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