sexta-feira, 25 de abril de 2014

Questão de dignidade



Francisco Espiridião 

Teve um tempo em que os roraimenses dormiam de portas abertas, apesar de a Penitenciária Agrícola, que não era do Monte Cristo, ficar situada em meio ao tempo, isolada de tudo, mas dentro dos limites da capital. Não passava de um casarão branco perdido no lavrado da periferia, no bairro São Vicente.

Naquele tempo, a população carcerária, que não ultrapassava uma centena de condenados, era outra bem diferente da de hoje, que tange os 1.600 indivíduos. Havia presos por envolvimento com drogas, sim, mas se registravam motins. Ninguém queimava colchões, nem existia em seu seio indivíduos importados de facções criminosas dos grandes centros.

O casarão solitário do lavrado do São Vicente abrigava na medida do possível só “boa gente”. Gente que, por circunstâncias outras, fora levada a pagar alguma “prenda” à sociedade, mas que, não obstante, embalava as mesmas aspirações de quem aqui fora permanecia.

Este cronista foi policial militar e comandou a guarda da Penitenciária naquela época. Nosso maior trabalho não era cuidar para que não entrasse droga em dia de visitas, nem ficarmos atentos para que não houvesse passarinhos batendo asas. O clima entre internos e polícia era de amplamente amistoso.
Nossa principal ocupação era bater o jogo com vinte pontos e dominó de carroça, além de esperar a hora das refeições, feitas de forma coletiva, preparadas pelos próprios internos. Presos e polícia, tudo junto e misturado, comendo quase que no mesmo prato.

Naquele tempo, os traficantes – a maior representatividade entre os internos – tinham como referência o Beiral. Não muito diferente de hoje. Aliás, havia sim diferença: ontem, era uma delinquência meio romântica. Hoje, extremamente trucidante. Mata-se o próximo com o mesmo sentimento com que se esquarteja um carneiro ou se torce o pescoço da galinha.

Antes, havia respeito à hierarquia. Não só dentro dos quartéis. Ela tinha lugar na escola, na relação professor-aluno; nas repartições públicas, entre chefe e subordinados; e, principalmente, entre aqueles que ultrapassavam as barreiras da lei em relação a seus carcereiros.

Quando o malandro falava com um polícia, não fosse este seu amigo pessoal, cerrava o cenho, baixava a cabeça e o chamava de senhor. Hoje, bandido enfrenta a autoridade como se fosse ele a própria autoridade.

O sentimento que impera nos presídios hoje – embalado pela visão do “politicamente correto” – é o de que o preso tem lá seus “sagrados direitos”. Diretos geralmente confundidos com libertinagem. O interno é o “rei do pedaço”. No interior das celas, o Estado não tem poder de mando. A qualquer pretensa falta de respeito da parte do carcereiro, estão aí para resolver a “parada” o Ministério Público e os Direitos Humanos. 

Para fazer crescer ainda mais a população carcerária, que no Brasil há muito ultrapassou a casa dos 500 mil, está aí, altaneiro, o ECA, o tal Estatuto da Criança e do Adolescente. Entre outras “boas e salutares medidas”, proíbe, com todas as letras, pompa e circunstância, que os pais ensinem seus filhos a trabalhar desde cedo.

Qual outra medida mais eficaz para aumentar a população carcerária de um País senão a de proibir que os pais ensinem suas crianças, na prática, que elas precisam ser responsáveis, fiéis nos negócios e que é trabalhando que se adquire dignidade?  «

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Cristo me salvou. Aleluia!

Francisco Espiridião 

O dia de hoje, Sexta-feira da Paixão, é considerado um dia santificado. Não tão santificado como na minha infância. Naquele tempo, década de 60, na minha casa [do meu pai] todos éramos extremamente católicos. Levávamos as tradições a sério.

Hoje, ainda há quem não coma carne nestes dias. Mas são poucos. Antes, semana santa era santa mesmo. A mistura era só peixe. Não se saía de casa, a não ser para participar da Procissão do Senhor Morto. Não se acendia o fogão (de lenha) nem mesmo para preparar uma rápida refeição.

Não se fazia qualquer trabalho. Fosse o mais leve ou aquele pesado por demasia. Muito menos se davam risadas. Éramos todos obrigados a demonstrar aparência circunspecta, espantosamente sisuda. Passávamos a semana mergulhados em profundo luto.

Para mim, criança antes dos dez, sexta para sábado, a pior noite. Tortura total. O romper da aleluia (o raiar do sábado) era evento tão esperado quanto o mais improvável. Enfiavam em nossas cabecinhas que, dado à desobediência, Papai do céu, aquele “velho carrancudo”, daria um definitivo “stop” no curso deste mundo.

Para a nossa alegria, sempre rompia a aleluia. Então, tudo era festa. A cada esquina do sábado havia um Judas para se malhar. Fosse hoje, não seria necessário repetir o Judas, já que são tantos e tantos os que pisam na bola, digo, na cabeça do povo.

Exemplo de prováveis Judas dos tempos modernos: dona Dilma, que diminuiu um tantinho assim na conta de energia elétrica, acaba de assegurar que depois das eleições a gente vai ver o que é bom para tosse. Outro bom de malhar – esse é coletivo: a turma do mensalão, o André Vargas, a violência desmedida, os acidentes de trânsito de Boa Vista...

Deixando os Judas de lado, há quem se lembre da brincadeira do serra-velha, sempre de sexta para sábado: ia-se para um cemitério e lá se faziam poucas e boas sobre túmulos de “personae non gratae”. O meu pai contava uma dessas histórias que eram uma delícia.

No seu tempo de jovem, início do século passado (Seu Sylvio despediu-se aos 96, em maio de 2009), a etiqueta exigia vestir-se a caráter, sempre. E lá se foram. Em bando. Serrar velhas.

Um deles encravou uma cunha na sepultura como se cravam corpos de vampiros – com estaca de madeira no coração. O fazia com as mãos para trás, olhando para frente, por medo do “de cujus”.

E, quando quis se levantar para sair correndo e zombando da estripulia praticada, viu-se preso. Havia encravado não só a sepultura, mas também a aba do paletó. Então, gritava:

– Me larga, defunto safado, me larga, defunto safado!

Como o defunto não o deixou, desmaiou sobre o túmulo.


Hoje, não se serram mais velhas e nem ninguém mais rouba galinha do vizinho e o convida para o almoço. Sou liberto para comer carne à vontade e não preciso mais esperar o romper da aleluia. Sei também que não preciso sair atrás de nenhum senhor morto porque o meu Senhor está vivo. Ele me salvou, Aleluia!