domingo, 8 de janeiro de 2017

Cantando para subir

FRANCISCO ESPIRIDIÃO (*)

Roraima, assim como a maioria dos Estados brasileiros, há muito perdera a guerra contra a delinquência. Quem efetivamente dá as ordens no interior da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC) são os próprios internos do sistema. Como prova, as lautas festas regadas a cerveja, rum, vinho, e sabe-se lá mais o quê.

O presídio foi construído na segunda metade da década de 1980. Sua capacidade era para no máximo 700 presos. Hoje, dá guarida a mais de 1,4 mil. O dobro da previsão. Com exacerbada população, não podia dar noutra coisa: quem canta de galo do portão para dentro são os que detêm o maior poder de ‘convencimento’. Está estabelecido o império das facções criminosas, fato inicialmente negado à exaustão pelas autoridades estatais.

O clima ali dentro é de verdadeiro terror. A lei vigente nada deixa a desejar à que impera entre os integrantes do sanguinário grupo Estado Islâmico (EI). Cortar cabeças é fichinha. Os líderes não toleram o mínimo deslize. O caso de Jeferson Articlínio Medeiros, o homicida que teve cabeça, braços e pernas decepados, encontrado dentro de uma lata de lixo na última segunda-feira (21), dá o tom da barbárie.

Oficialmente, nos últimos dois meses, foram 13 [esse número sugere alguma coisa?] os mortos no interior da PAMC. Todos com requintes de selvageria. Há quem diga que sejam bem mais que 13. Mas, como quem ultrapassa o portão principal que separa a carceragem das celas representa o rebotalho humano, quem se preocupa com isso?

Há, sim, quem se preocupe. É de cortar coração ver mães, esposas, filhos aflitos sem saber o que está ocorrendo nos labirintos da morte. Visitas suspensas temporariamente, o que aumenta a aflição dos familiares. Mas como ser de outra maneira? O Estado se vê de mãos atadas. Completamente inoperante diante de dantesco quadro.

A leitura da Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania é que os atos de violência dos presos podem ser entendidos como uma tentativa de represália às 'medidas rigorosas adotadas pela administração do sistema'. Para os simples mortais, a pergunta que não quer calar é: quais ‘medidas rigorosas’, se é público e notório ser a PAMC uma tábua de pirulito, com furos por todos os lados, de onde os presos fogem quando e como querem?

O Governo do Estado tem afirmado insistentemente que o erário está a pão e água. Pior ficará quando a Justiça for acionada e decidir fazer o seu trabalho, decretando rechonchudas indenizações às famílias daqueles que cantaram para subir dentro do sistema penitenciário roraimense. O Estado tem a inteira responsabilidade pela vida de cada um dos internos, formem eles a mais sórdida espécie sub-humana.


Afinal, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em sessão realizada no dia 30 de março deste ano, que a morte de detentos em estabelecimento penitenciário gera responsabilidade civil do Estado quando houver inobservância do seu dever específico de proteção. Alguém duvida ser este o caso de Roraima? 

Monumento ao Garimpeiro

FRANCISCO ESPIRIDIÃO (*)

Quando o então Palácio 31 de Março, hoje, Senador Hélio Campos, abriu as portas para receber mais um coronel da Aeronáutica, em 1967, não tinha ideia de quanto desenvolvimento se fazia anunciar ao então Território Federal de Roraima. Dois anos depois de desembarcar pela primeira vez neste setentrião, Hélio da Costa Campos passa a surfar uma onda de desenvolvimento que envolvia todo o país.

Hélio Campos governou o território de 1967 a 1974, com lacuna de nove meses, entre 1969 e 1970, quando esteve à frente do Governo roraimense o major aviador Walmor Leal Dalcin. A temporada de vacas magras no Brasil dura todo o período do primeiro e segundo governos militares, de 1964 a 1969.

Nesse período, o Palácio do Planalto foi ocupado pelo marechal do Exército Humberto de Alencar Castelo Branco, até 1967, e pelo general Arthur da Costa e Silva, de 1967 a 1969. Com a ascensão do também general Emílio Garrastazu Médici, em 1969, o Brasil passa a viver o chamado Milagre Econômico Brasileiro, com tempos de forte bonança.  

Logo que aqui chegou, Hélio Campos tratou de definir uma matriz econômica para o território. Precisava decidir entre duas vertentes: o garimpo, forte tradição deste setentrião, e a pecuária, que na época era pujante – não havia ainda a febre das demarcações indígenas. Optou pela primeira.

Para sedimentar essa decisão, Campos idealiza a construção de um monumento. E assim seguiu nesse caminho. Chamou o então diretor da Divisão de Obras Walter Bastos de Mello, com quem compartilha a ideia. Mello saiu do palácio naquele dia com a incumbência de pôr o plano em prática.

Na companhia do desenhista Francisco da Luz Morais, o “Japurá”, foi a Manaus e de lá, ao Rio de Janeiro. Transformar a ideia em algo palpável foi desafio aceito por um estaleiro carioca. Retorna meses depois, trazendo a escultura, toda seccionada, feita em borra de alumínio.

Essa história em detalhes faz parte do meu livro “Histórias de Garimpo, Extração mineral em terras roraimenses”, lançado em 2011. Dia desses, relendo trechos, percebi que cometera algumas indelicadezas. Entre elas, não ter dado o crédito dessa passagem importante da história.

Quem viveu de perto todo o episódio que levou à decisão de plantar na Praça do Centro Cívico a escultura de um garimpeiro e sua bateia foi o amigo Waldir Paixão, que tão gentilmente me cedeu documentos e não se furtou em dedicar parte do seu tempo para me ajudar na construção daquela etapa da obra literária.

Ele me contou, por exemplo, que ali, onde hoje está fincado o Monumento ao Garimpeiro, havia antes um obelisco, que muitos, jocosamente, diziam ser uma ode ao órgão sexual masculino.


Quero aqui deixar, com mais de cinco anos de atraso, o meu agradecimento ao inestimável amigo Waldir Paixão, assim como a tantos outros que me ajudaram na feitura do livro. Paixão é um entusiasta daqueles que se aventuram a navegar nas águas da literatura em Roraima. Também pudera... Tendo ao lado a minha eterna professora Edinelza Rodrigues, ai dele se não o fosse.

A PM de luto

(*) FRANCISCO ESPIRIDIÃO

A Polícia Militar voltar a sentir um gosto amargo na boca. Mais um de seus membros assassinado – o segundo neste ano. O caso ocorrido na tarde de terça-feira (15) se deu de forma rude, cruel e traiçoeira. Tiros desferidos pelas costas. Enquanto o PM dormia em uma rede na varanda da própria casa.
Arnaldo Alves de Sena, o A. Sena, havia passado a noite anterior em serviço numa das guaritas da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. Aproveitava a sesta para recompor-se do estresse. Com certeza, jamais poderia prever o que iria acontecer.
O pior é que o crime se deu por encomenda. Tão logo o ato concretizado, fogos de artifício ribombam em ruas próximas ao local, assim como “festa de arromba” estoura no interior da PAMC. A suspeita inicial foi de que a morte teria sido encomendada de dentro do presídio.

O luto, no entanto, não é privilégio da PM roraimense, mas de todo o sistema de segurança do País. Do início do ano até o começo deste mês de novembro, o Rio de Janeiro registrou nada menos que 350 policiais baleados. 90 não resistiram. Do total, 326 eram policiais militares. Detalhe: 128 atingidos em áreas pacificadas.

Em São Paulo, no mesmo período, os números se assemelham. Foram 98 policiais mortos, sendo 88 PMs. Desse universo, apenas cinco foram mortos em serviço. A quase totalidade feneceu enquanto gozava de merecida folga, a exemplo de A. Sena. Estatísticas mostram que o Brasil tem um policial morto a cada 32 horas.

O outro lado da moeda é tão ou mais trágico ainda. Dados da Human Rights Watch mostram que, no ano passado, para cada policial assassinado no Rio de Janeiro, outras 25 pessoas morreram em decorrência de intervenções policiais. Em todo o país, a instituição garante que foram 645 pessoas mortas em ações envolvendo as polícias Civil e Militar.

Mas tem mesmo que ser assim? Onde o País vai parar seguindo nessa estrada mal pavimentada, com clima de guerra civil incrustado no inconsciente coletivo? Não é para menos. O número de mortes violentas no Brasil supera o de países em guerra declarada. Só em 2015, foram mortos violenta e intencionalmente 58.383 brasileiros.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado no dia 28 do mês passado, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, foram 278.839 ocorrências de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil. Na Síria, em guerra, em igual período foram registradas 256.124 mortes violentas, de acordo com o Observatório de Direitos Humanos daquele país.

Em síntese, essa guerra está a exigir um armistício. A permissividade da Constituição Cidadã precisa ser revista. A questão das drogas, patrocinadora da violência desenfreada, tem de ser enfrentada de maneira efetiva. Sem isso, não há solução à vista

A desnutrição e o desperdício

FRANCISCO ESPIRIDIÃO (*)
Rápida passagem pela Feira do Produtor, no bairro São Vicente, foi suficiente para eu começar a pensar num problema que aflige um bilhão de pessoas no mundo: a fome. Abacaxis inteiros, só porque apresentam aspectos de terem sido batidos durante o transporte, são descartados, jogados em contêineres de lixo, assim como tantas outras espécies de frutas aproveitáveis.

É algo brutal ver tanto desperdício de alimentos. Desolador ver tanta comida jogada no lixo, enquanto há tanta gente com ‘insegurança alimentar’, o pior eufemismo para fome. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), no mundo são aproximadamente 870 milhões de pessoas que sofrem de subnutrição.

Não estou falando de algo distante, como o leste e sul do Continente Africano, onde crianças sofrem de desnutrição aguda grave, definida como fome extrema. Imagens de crianças etíopes só coro e osso correm o mundo, suscitando pena nos mais variados segmentos sociais. A situação também é considerada de extrema gravidade na América Latina, especialmente na Bolívia, na Guatemala e no Haiti. Porém, nenhuma ação efetiva capaz de mitigar o problema.

Quando presenciei o exacerbado desperdício de comida na Feira do Produtor, veio-me à mente as índias venezuelanas fardadas a pedirem esmolas nos semáforos de Boa Vista. Pensei em quantas crianças que habitam o entorno da capital que sobrevivem com a barriga nas costas. Enquanto isso, centenas de quilos de alimentos vão aos tonéis de lixo. Frutas com um percentual acima de 80% de aproveitamento. 

Como eu sei disso? É claro que eu não estou nas casas das pessoas para conhecer tais detalhes, mas há um indicativo que não falha: o Cernutri, Centro de Recuperação Nutricional Infantil, da Prefeitura de Boa Vista. De janeiro a setembro deste ano, prestou 15.249 atendimentos, de acordo com matéria publicada na imprensa.

A unidade, localizada na avenida Ataíde Teive, Liberdade, oferece tratamento de reabilitação por meio do regime de semi-internação. Em outubro passado completou 26 anos prestando atendimento a crianças desnutridas da capital.

Parceria com o Sesi-RR permite ao Cernutri obter maiores conhecimentos sobre como manipular alimentos, bem como aproveitar todo o potencial que os diversos gêneros oferecem, antes de serem descartados. Por meio do curso Cozinha Brasil, os conhecimentos são repassados às mães que buscam no centro refúgio para o infortúnio dos filhos.

Amanhã se inicia um novo ano. Período em que a gente traça metas e metas. Promessas que não serão cumpridas, sabe-se. No momento do planejamento, que tal pensarmos nas criancinhas – sejam elas da África ou da periferia de Boa Vista – que não têm com que se alimentar?

Não sei como, mas cada um de nós é responsável. Pôr no prato só aquilo que vamos comer, sem desperdício, já seria um bom começo. Feliz e próspero Ano Novo! 

A bruxa está solta

(*) FRANCISCO ESPIRIDIÃO
A virada de ano foi prato cheio para supersticiosos. 2017 chegou carregado de maus fluidos. Na economia, as notícias não poderiam ser piores. Analistas gostariam de ter dormido no dia 31 de dezembro de 2016 e amanhecido só no dia 1º de janeiro de 2018. Acreditam que 2017 chegará ao ocaso com o PIB do País tangenciando zero.

A taxa de desemprego, num patamar dos 12% (12,1 milhões de desocupados), deve continuar subindo, de acordo com economistas ouvidos pelo portal de notícias Uol. "Temos uma incerteza política, uma incerteza econômica e agora também uma incerteza jurídica", afirma Otto Nogami, professor de economia do MBA Insper.

Em Mongaguá, litoral paulista, a passagem de ano foi um desastre. Em vez de espetáculo aprazível, tornou-se pesadelo àqueles que foram à festa de Réveillon na Praça Dudu Samba. Os fogos da queima, ao invés de subirem, partiram inapelavelmente em direção à população. Uma dezena de pessoas atendidas no Pronto Socorro Municipal. Falha técnica a ser apurada pelas autoridades competentes.

Ainda na noite de 31 para 1º, tocou o horror na cidade de Campinas, ABC paulista. Um cidadão mal resolvido, de 42 anos, usando uma pistola calibre 9 mm [dois carregadores] decidiu investir contra a própria família e quem mais estivesse por perto. A tragédia ocorreu durante a festa de comemoração da passagem de ano. 12 mortos e três feridos. Com a mesma arma, o tresloucado praticou suicídio, completando o emblemático número de mortos: 13.

Para deixar patente o espírito da ‘bruxa tá solta’, o pior ainda estava por vir. O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, e a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), Boa Vista, deram o tom da tragédia anunciada.

Em Manaus, a rebelião teve início por volta das 16h do dia 1º e durou cerca de 17 horas, com um saldo de 60 presos decapitados e esquartejados. O espetáculo do horror repetiu-se em Boa Vista na noite de quinta para sexta-feira: 33 presos imolados com instintos da mais cruel perversidade.

O artigo 1º da Lei das Execuções Penais cita: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Grifo meu: “... proporcionar condições para a harmônica integração social...”. Utopia barata.

Ao ultrapassar o portal da ala em que, teoricamente, purgará suas culpas, o condenado dá adeus a qualquer esperança. Se escapar com vida, ingressa numa pós-graduação do crime. As facções Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da Capital (PCC), ao se matarem, prestam um grande favor ao governo: cerca de 100 delinquentes ‘neutralizados’.”


Na quinta-feira (5), o presidente Michel Temer chamou o fato de ‘acidente pavoroso’. Esqueceu-se de admitir que ‘acidente’ mais ‘pavoroso’ foi o governo brasileiro ter perdido escandalosamente a guerra para o tráfico. Por ‘acidente’, Temer é o responsável, visto ser o presidente de plantão.