sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Dura Lex

Francisco Espiridião

Quem não ouviu ainda a expressão "menino criado com avó"? Geralmente, diz-se de indivíduo egocêntrico. Que só enxerga o próprio umbigo. Cresceu cronológica e fisicamente. Mas continua menino no raciocínio. Fazendo coisas próprias de menino.

A ciência não confirma de todo esse axioma. Há crianças criadas, e muito bem, pelos avós. São crianças centradas. Firmadas nos mais sadios conceitos de relacionamento com o outro. Sabem reconhecer que seu direito termina quando começa o do coleguinha.

A prática mostra - aqui também nada tem de científico - que o amor exacerbado aos interesses próprios em detrimento aos dos próximos aflora com maior freqüência no filho único. Acostumado, naturalmente, a ter tudo o que deseja. E na hora que deseja.

Isso, quase sempre, é caráter mal forjado a partir do sentimento de culpa dos pais, que, por um motivo ou por outro, negaram ao filho o direito de desfrutar da companhia sadia de um irmãozinho. Ou irmãzinha.

Filho único, o Francisco, no alto dos seus três aninhos, já começa a aprender que o mundo não existe apenas para lhe servir. Como avô, de vez em quando, ainda que sem querer, me pego envolvido por essa teia, fazendo-lhe as vontades.

Partindo de mim, vovô coruja todo, isso não chega a ser nenhuma novidade. Com a avó, no entanto, a história é outra. Gosta muito dele, mas na hora do sério é sério mesmo. Como se dizia antigamente, com ela a volta é seca. Trata o menino à moda antiga.

Todas as suas atitudes apontam para a austeridade. Ama muito, e, por isso mesmo, quer ver o menino crescer da mesma maneira como viu as filhas. Com ela, não tem esse negócio de amarrar a cara e dar uma de netinho querido. Trata-o assim, sem grandes privilégios.

Nesses momentos, esforço-me, em vão, em argumentar que nós não somos os pais. Que a tarefa de ser chatos recai melhor sobre os pais e não sobre os avós. Avós, acredito, devem ser vistos como velhinhos camaradas, simpáticos. Essa é, enfim, a imagem clássica. Eliana discorda.

Domingo desses, saíamos da igreja. O Francisco preferiu vir em nosso carro e não no da mãe. Não lembro sobre o que conversávamos ao longo do percurso, quando ele saiu-se com essa:

- Vovó, vai procurar a tua turma!

O tempo fechou para ele. Acredito que naquele momento ele riscou aquelas expressões de seu vocabulário. Pelo menos não o vi mais repeti-las.

Não preciso dizer que me dói muito ver a mãe ensiná-lo. Da forma mais tradicional que se conhece. Chinelo na mão. Ao mesmo tempo, porém, reconheço ser a fórmula mais acertada. Ele sofre agora, para não sofrermos nós mais tarde.

É a lei.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

A pantomima

Francisco Espiridião

Foi numa noite dessas. Estava nos prelúdios da sinfonia de Morfeu. Algo desafinou. Uma espécie de arranhado irritante. Como o ar-condicionado faz aquele barulhinho... não, um barulhão ensurdecedor, achei que se tratava da Karen ou da Fábia Marcela escovando o pé, no banheiro.

Aí, lembrei que eu havia sido o último a me recolher. Tinha certeza disso porque quase não encontrava as chaves para trancar as portas. Isso, já mais de meia-noite. Tive o cuidado de apagar as luzes antes de me entregar ao travesseiro.

É impressionante. Ocorre quase todas as noites. Quando já estou pegando no sono, a Eliana me cutuca, acho que só de birra, e pergunta se eu fiz o serviço direitinho.

– Sim, tranquei tudo, fica quieta, vai dormir!

Aliás, parece que agora vamos dormir mais tranqüilos. O nosso vizinho amicíssimo do alheio acaba de ser recolhido, aos costumes, à Penitenciária Agrícola. De quebra, entregou para a Polícia os demais cúmplices. Gente que a gente nem imaginava.

Ah, sim, o arranhado na porta. Agora eu já tinha certeza de que não era ninguém no banheiro.

Pausa. O silêncio volta a reinar. Maneira de dizer, porque a zoada do ar-condicionado é renitente. Menos mal. Com ela, já me acostumei. Posso voltar a dormir em paz.

Afinal, aquele arranhado não passou de pura imaginação.

– Não era nada, não – penso meio acordado, meio dormindo. Não havia razão para acordar a Eliana. Aliás, acordá-la é coisa que eu não me atrevo a fazer no meio da noite. Exceção para situações extremas.

– Rec-rec-rec-rec.

Não. Dessa vez eu estava acordado. Havia alguma coisa, sim, arranhando a porta do quarto. E pelo lado de dentro. Para meu desespero, cada vez mais forte. Mais forte, sempre. Melhor ver o que se trata.

Será que a Bolinha não foi dormir na casinha dela, lá fora? Vai ver que adormeceu no pé da nossa cama e ninguém viu. Sentiu saudade da caminha (sim, a Bolinha dorme de cama, com colchão e tudo) e alguém precisava abrir a porta para ela sair.

Criei coragem. Nada, quem precisa de coragem para abrir uma porta? Enfio o dedo no interruptor e... quase caio para trás. Um rato! Mas não era um rato qualquer. Era uma respeitada ratazana (temo aqui estar praticando uma desdita: será que o bicho não era macho?).

Não critico mulheres que têm fobia de baratas. Sei como é isso. Rato, amigo, me tira do sério!

Aquela cena vai ser difícil de esquecer. Por gosto se media o comprimento do roedor. Quase um palmo e meio. Só de rabo! Quando me viu, tratou de se homiziar no alto do guarda roupa. Dentro de uma das malas empoeiradas.

Aí não teve jeito. Fui obrigado a pedir socorro.

A Eliana acorda apavorada.

– Cadê, cadê o ladrão?!!! Pensou que ele já estava dentro do quarto.

Quando se inteirou da situação, não se agüentou:

– Cabra frouxo, com medo de um ratinho de nada! Sobe logo aí, mata esse bicho e vamos voltar pra cama!

Preferi a última parte. Ele, de lá mesmo, escafedeu-se. Ficamos quites. Não o matei. Mas ele também nunca mais voltou a fazer pantomima na porta do quarto.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A micose

(*) Francisco Espiridião

Atendendo a um pedido, daqueles que não se pode resistir, pedido de filha caçula, fui ao Hemocentro de Roraima. Primeiro, para saber se eu poderia ainda continuar na minha condição de doador. Atitude “simples” que, segundo o Ministério da Saúde, salva vidas.

A dúvida recaía na minha condição atual. Ganhei um apelido sugestivo há cerca de quatro anos. Um pouco mais. Ou seria muito mais? Sei lá... Sei que ali ganhei um pré-nome. Passaram a chamar-me hipertenso. O Espiridião? Ah, sim, o hipertenso!

E nessa nova condição, não tinha certeza se poderia doar o meu sangue sem que pudesse estar transmitindo o gens à humanidade. Muito solícita, a atendente me pediu que eu provasse que eu era mesmo o Espiridião. Não sei por que tanta desconfiança. Mas tudo bem.

Passei-lhe a minha identidade. A da Fenaj (é chique). Ela começou a preencher uma ficha virtual (no computador). Lá pelo meio do inquérito a que ela me submetia, caí na besteira de lhe perguntar, inocenteente, se não havia problema em um hipertenso doar sangue.

Aí, a coisa mudou.

– Antes de nós continuarmos a preencher sua ficha, entre ali, naquela primeira porta, à esquerda.

Fui ao corredor. A primeira à esquerda era a sala de “Triagem”.

Entrei. Duas enfermeiras vestidas a rigor. De branco:

– Quero medir a pressão para saber se posso doar.

– Cadê sua ficha?

– Que ficha, minha senhora! A mulher lá fora me disse que para não perder tempo, eu viesse logo aqui para saber se podia ou não!

Aceitou minha argumentação. Sento-me na cadeira, estiro o braço gordo. A bombinha enchendo a braçadeira. Começa o processo.

A segunda enfermeira, que, acho, estava ali só de enxerida – sabe como é, o peru do jogo? –, pergunta meio que alarmada:

– O que é isso aí?

– Nada não. Só uma coceirinha besta. Feriu um pouquinho, mas não é nada não.

– Não pode! Com coceira não pode! A sua pressão até que está boa. Catorze por oito. Mas com coceira não dá. Isso é micose, e já deve estar impregnada no seu sangue. Pode sair.

Saí. Triste por não poder atender ao pedido inalienável da Fábia (O+).

Mais triste ainda por saber que uma coceira pode mudar o mundo. Já pensou se ela descobre aquela frieira que cultivo há mais de trinta?

Ora, pois!

Francisco Espiridião

Cerca de um mês atrás entrei “numas” de não mais escrever artigos criticando o governo. O mesmo governo equivocado a que me referi no livro que lancei em 2004, com referência aos primeiros 12 meses da gestão passada. Referendada, com louvor, pelas eleições de 2006.

Mas, analisando direitinho, entendi ser muita covardia minha dispor desse espaço e nele não me referir ao que se passa neste Brasil de todos nós. Não. Definitivamente, não tenho o direito de assistir a tudo de camarote. Achando que se está bom para mim tudo o mais vá para o inferno (plágio sem graça da música de Roberto).

Acho que muita gente não percebeu. Os jornais, principalmente os de Boa Vista – mas isso ocorreu em todo o País – fizeram-se de morto, enquanto o governo deu de presente de Papai Noel aos consumidores um aumento – que passou batido – no preço da gasolina.

Agora, leio, com grande desprazer, que a festejada decisão do governo de não aumentar impostos para compensar sua incompetência junto ao Senado – leia-se CPMF derrubada – era tudo de mentirinha. Tudo caô, como dizem os jovens.

Gente, é uma desfaçatez, para não dizer coisa mais grave, o que se viu no primeiro dia útil do ano. O ministro Guido Mantega foi à TV falar alto e bom tom que o compromisso de não aumentar impostos valia apenas para os últimos dias de dezembro.

Em outra época, quando a palavra de um homem valia o preço da sua honra, esse Guido e, principalmente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já estariam no pau-de-arara. Faz tempo. Não que eu seja adepto de qualquer forma de tortura. Longe de mim tais pensamentos. Mas em certos casos ela parece necessária. E como parece!

Lembram que o presidente Lula foi enfático em desmentir o ministro, dias após a derrota sofrida no Senado?

– Nada de aumento de impostos para compensar a CPMF –, dizia o fanfarrão, desmentindo o ministro que, de tão lívido, mais parecia um zumbi. Não sabia onde enfiar a cara.

Agora, a lambança é outra:

– O presidente Lula disse que não mexeria na área tributária em 2007 e de fato não o fez.

Estamos fazendo em 2008 e, portanto, está dentro daquilo que foi estabelecido –, atira o ministro sobre o povo brasileiro, como se estivesse atirando na Geni. Com a convicção de quem fez grande investimento na compra de óleo de peroba.

Então tá. Façamos de conta que tudo foi esclarecido. E, de quebra, vamos acreditar que o País está melhor. Afinal, toda a mídia comprometida diz isso. A toda hora.

Acreditemos que o Governo criou os milhões de novos empregos que prometera, ao invés de mandar a fiscalização regularizar a ferro e fogo a situação dos trabalhadores em atividade – mas sem carteira assinada. Ou seja, nenhum emprego novo foi criado, mas façamos de conta que sim.

Vamos acreditar que a vida dos brasileiros melhorou. Que os trabalhadores tiveram aumentos reais de salário. Que os servidores públicos terão o que lhes cabe de direito. Que as Forças Armadas continuam bem armadas. Que a Saúde não está na UTI. Que a Educação continua educando. Que isso, que aquilo, que aquilo outro...

Façamos de conta, ora, pois! Assim, quem sabe, viveremos melhor. E que tudo mais vá para o inferno. Ora, pois!

Coisa do outro Mundo!

Francisco Espiridião

Acabo de ler uma crônica sobre inventos geniais. Uma das 129 melhores, de Mário Prata, publicadas em livro pela Editora Planeta (2007). Então, lembrei de um dos vários episódios vividos pelo casal Pastor Josué e Irmã Isabel.

Os dois passaram três longos anos como missionários da Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira, na África. Cidade de Huambo, Angola. Contaram essa e tantas outras, durante a visita que lhes fizemos, em março de 2007.

Ao retornar ao Brasil, ficaram e permanecem morando em Recife (PE), terra natal de ambos. O pastor Josué é o líder da Igreja Batista de Ponte dos Carvalhos, na cidade do Cabo de Santo Agostinho, região metropolitana de Recife.

Muita gente, por certo, ainda guarda ternas lembranças do casal em Boa Vista. Josué foi, por seis anos, pastor da Igreja Batista da Liberdade, ali na Avenida Mário Homem de Melo.

Tempo em que trabalhou, também, como psicólogo no Hospital Geral de Roraima (HGR). Deixou a Capital roraimense em 2001, para abraçar a missão evangelística naquele País africano.

Irmã Isabel contou-nos como era difícil a vida em terras angolanas. O País saíra recentemente de uma guerra civil. Não havia casa que não mostrasse as marcas da intolerância nas fachadas.
Algo parecido com as casas e cubículos de favelas outras do Rio de Janeiro. Pepinadas de balas por todos os lados.

O país viveu mergulhado nesse clima de terror – guerra civil – desde que alcançara a independência do jugo colonial português, em 1975, até o início de 2001, com a morte do líder da Unita, Jonas Savimbi.

Angola parou no tempo. A miséria, então, era algo dantesco. O pior é saber que toda essa situação é sem sentido. Angola é rico em petróleo, diamante, cobre, manganês, ferro, fosfato, sal, mica, chumbo, estanho, ouro, prata e platina.

A miséria é fruto da intolerância humana. E não é privilégio do País de José Eduardo dos Santos. A maioria dos países africanos vive situação idêntica. A guerra é o denominador comum.

Quando o casal chegou em Huambo, foi morar num prédio de apartamentos. Eram tidos como ricos. Vejam só! Missionários evangélicos, sustentados com ofertas dos irmãos. Imagine os ricos que eram.

E isso era levado a sério. Todos os vizinhos vinham buscar o que pudessem para comer. Gente que não mastigava nem um pão seco havia três dias. A missão era pregar que Jesus Cristo é a única esperança para o ser humano. Mas como dizer isso a quem está morrendo de fome?

A estratégia, então, foi dividir o que tinham. Não dá para comer, vendo alguém morrer de fome ao seu lado. Decidiram então fazer reuniões em casa. Logo após o encontro, serviam uma merenda reforçada. Muitos assistiam às palestras por saber que, ao final, iriam forrar o inadimplente estômago.

Numa dessas merendas, a irmã Isabel achou de servir uma vitamina. Não sei de quê. Vitamina, é claro, processada num liquidificador. Só que eles não conheciam o tal processador de alimentos sólidos. O nosso velho e conhecido liquidificador.

Trataram logo de dar-lhe um nome. Sugestivo e imponente: a “Máquina!”.

As crianças foram as que mais se deram bem. Todos os dias voltavam pedindo que “dona Branca” (lá, eles eram brancos) lhes preparasse uma merenda. Mas não qualquer merenda. A merenda feita na “Máquina!”. Coisa do outro Mundo!

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Emprestado para sempre

Francisco Espiridião

Neste sábado, a Karen, a Marcela e a Charlie chegaram em casa com três filmes. Locados, acredito, na Scorpion, da Ataíde Teive. Um deles me chamou a atenção. O Perfume - História de um assassino. O mesmo título de um livro que li no fim da década de 1980. Do escritor alemão Patrick Süskind.

No início dos anos 1990, acho que em 91, emprestei essa obra não me lembro bem para quem. Para a jornalista Adriana Cruz, talvez. Na época, adolescente frívola, fazia a coluna social do Jornal de Roraima, do Nilton Oliveira. Funcionava ali, no início da Rua Penha Brasil, atrás da extinta Telaima, lembram?

Nunca mais vi a cor do danado. Emprestar livros, aliás, é mesmo um problema seriíssimo. Recebi de volta bem poucos dos que cheguei a emprestar. Mas, também, tomei emprestado alguns. Desses, muitos eu deixei de devolver.

Um deles foi O jornalista e o assassino - Uma questão de ética, de Janet Malcolm. O dono, o também jornalista Tarcilo Ayres, não pode me encontrar por aí que vai logo me cobrando.

- Cadê meu livro, rapaz!

Você ser cobrado no meio de gente é um negócio desconcertante. Quando se trata de dinheiro, então... Traz sempre sobre o inadimplente uma forte carga de culpa. Travestida de constrangimento. E se isso acontece quando você está com a namorada a tira-colo, então...

Deixar de devolver ao dono, principalmente quando se trata de livro, nem sempre significa falta de vontade de fazê-lo. Devolver o livro do Tarcilo, por exemplo, não foi, nem tem sido tarefa fácil. E veja que ele me emprestou O jornalista em 1993. Ou foi em 1994? Sei lá... Sei que a gente trabalhava junto, na Folha.

Certa vez, encasquetei que tinha que devolver o tal livro. Coloquei-o no carro. Rodei mais de um mês. E nada. Nem sinal do Tarcilo. Em se tratando dele, trabalho fixo é coisa de que não se tem notícia.

Precisei mandar o carro para o posto. Para lavar. Retirei o dito-cujo do porta-luvas. Podia, por esquecimento, ficar perdido no escritório do posto. Só que, depois de passado o banho, esqueci de devolvê-lo ao porta-luvas.

No dia seguinte, mal saio de casa e dou de cara com quem? Com o Tarcilo, é claro. Bem feito! Eu não tinha nada que fazer na Assembléia Legislativa.

- Não é possível! Passei um mês procurando esse cara. E ele me aparece logo agora! -, pensei.

Advinha qual foi o seu bom-dia...

Visitando a livraria Nobel, dia desses, encontrei O Perfume. Quando dei por mim estava digitando a senha do cartão. Não sei por que, mas tornava a comprar o mesmo livro. Lido tanto tempo atrás. Será que foi pela força da história ali relatada? Terrível, mas envolvente.

Bem, de qualquer forma, já que o assunto veio à tona, vou amarrar uma fitinha no braço esquerdo, para não esquecer. Quando sair de casa a próxima vez devo levar comigo O Jornalista. Vai que eu me encontre de novo com o Tarcilo...