JONATHAN SWIFT (1729)
Tradução de Helena
Barbas http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/SwiftProposal.htm [Out.2004]
É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta
grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas
das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três,
quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante
pedindo esmola.
Estas mães, não sendo capazes de trabalhar para angariar honestamente
a vida, veem-se forçadas a gastar todo o tempo que têm a andar por ali, a
mendigar o sustento para os seus filhos desprotegidos. E estes, depois de
crescerem, ou se tornam ladrões por falta de trabalho, ou abandonam o seu
querido país natal para se irem alistarem num exército inimigo, ou se vendem
como emigrantes para os Barbados.
Penso que todos os Partidos Políticos estão de acordo que
este número prodigioso de crianças – nos braços, às costas, ou aos calcanhares
das mães, e frequentemente dos pais – na atual e deplorável situação desta república, é uma
lástima enorme e suplementar.
Portanto, quem quer que possa encontrar um método justo,
barato e fácil para transformar estas crianças em membros saudáveis e úteis à comunidade,
deverá não só merecer a aprovação do público, como ver ser-lhe erguida uma
estátua como salvador da nação.
Porém, a minha
intenção está muito longe de se
confinar apenas a prover pelas crianças dos pedintes confessos. É de âmbito
muito mais vasto, e deverá, no geral, incluir a totalidade do número de
crianças de uma certa idade que nascem de pais, de fato, tão incapazes de as sustentar
como os que pedincham a nossa caridade nas ruas.
No que me diz respeito, tendo dedicado os meus pensamentos a
este importante assunto durante muitos anos, e tendo ponderadamente pesado as
várias propostas de autores de outros projetos, achei-os sempre grosseiramente
errados na computação.
Na verdade, uma criança acabada de sair da barriga da sua
mãe pode ser sustentada pelo leite dela durante um ano solar, exigindo pouco mais
de outro tipo de alimentação. No máximo, nunca acima da importância de 2 xelins
que a mãe poderá decerto conseguir, além do valor dos farrapos, pela sua legal
ocupação de mendicante.
É exatamente com um
ano de idade que proponho prover por estas crianças, de tal modo que, em vez de
serem uma carga para os pais, ou para a paróquia, ou em vez de virem a necessitar
de comida e roupa pelo resto das suas vidas, pelo contrário, acabem a
contribuir para a alimentação e, em parte, para o vestuário, de muitos
milhares.
Existe igualmente uma outra grande vantagem na minha
proposta, que irá prevenir os abortos voluntários, e aquelas horríveis práticas
das mulheres que assassinam os filhos bastardos. Infelizmente, um costume
demasiado frequente entre nós, que suscita lágrimas e piedade no peito humano
mais selvagem. E julgo que sacrificam os pobres bebê inocentes mais para evitar
a despesa do que a vergonha.
Sendo o número de almas neste reino normalmente avaliado em
um milhão e meio, calculo que entre estas devem existir cerca de duzentos mil
casais cujas mulheres são férteis. Deste número subtraio trinta mil casais com
meios para manter os seus próprios filhos embora, dadas as atuais misérias da
nação, eu julgue que não possam existir tantos.
Todavia, assegurado isto, restarão cento e setenta mil
parideiras. De novo subtraio cinquenta mil por conta das mulheres que abortam,
ou cujos filhos morrem por acidente, ou doença, durante o primeiro ano. Restam apenas
cento e vinte mil filhos de pais pobres a nascer por ano.
Portanto, a questão é saber como criar e sustentar este
número, o que, como já disse, na atual situação das coisas, é totalmente impossível
por qualquer dos métodos até agora propostos. Não podemos empregá-los nem em
fábricas, nem na agricultura. Também não construímos casas (quero dizer, no
país) nem cultivamos a terra: muito dificilmente poderão ganhar a vida a roubar
antes de chegarem aos seis anos de idade – a não ser como cúmplices –, embora
deva confessar que aprendem os rudimentos do ofício muito mais cedo.
Porém, é um período durante o qual só podem ser considerados
como aprendizes, tal como me informou um cavalheiro importante do condado de
Cavam, que me garantiu nunca ter conhecido mais do que um ou dois casos abaixo
da idade dos seis anos, mesmo numa parte do reino tão famosa pela mais rápida
proficiência nessa arte.
Foi-me garantido pelos nossos comerciantes que um rapaz, ou
uma rapariga, antes dos doze anos de idade não é mercadoria vendável. E, mesmo
quando chegam a essa idade, não poderão vir a render no mercado mais do que
três libras, ou três libras e meia coroa no máximo. Uma verba que não chega
para dar compensação nem aos pais, nem ao reino, dado as despesas com a
alimentação e com os farrapos que custam, pelo menos, quatro vezes aquele
valor.
Passarei agora, humildemente, a apresentar os meus próprios pensamentos
os quais, segundo espero, não serão susceptíveis de merecer qualquer objeção.
Foi-me garantido por um muito sábio americano do meu
conhecimento, em Londres, que uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com
um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente e completo –
seja estufada, grelhada, assada, ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que
poderá igualmente ser servida de fricassé ou num «ragout».
Portanto ofereço humildemente à consideração pública que,
das cento e vinte mil crianças já computadas, se possam reservar vinte mil para
criação. Desta parte, apenas um quarto deverá ser de machos – o que já é mais
do que permitimos às ovelhas, ao gado bovino e ao suíno.
A minha justificação é que estas crianças raramente são
fruto do casamento, uma circunstância não muito considerada pelos nossos selvagens,
pelo que um macho será suficiente para servir quatro fêmeas.
Deste modo, as restantes cem
mil, com um ano de idade, poderiam ser oferecidas para serem vendidas às
pessoas de qualidade e fortuna reino fora – advertindo sempre a mãe para que as
deixe mamar à vontade no último mês a fim de as tornar rechonchudas e gordas, dignas
de uma boa mesa.
Uma criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a
família a jantar sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um
prato razoável. Se temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará
ainda bem conservada no quarto dia, especialmente no Inverno.
Fiz as contas e, em média, um recém-nascido pesará 12 libras
e, se aceitavelmente tratado, durante um ano solar aumentará para 28 libras. Concedo
que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito
adequada aos senhorios – e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais,
poderão ter direito de preferência sobre os filhos.
A carne dos bebês estará dentro do prazo o ano todo, mas
será mais abundante um pouco antes, e depois, de Março. Pois foi-nos dito por um
autor sério, um eminente médico francês que, sendo o peixe uma dieta prolífica,
nos países católicos romanos há mais crianças nascidas cerca de nove meses
depois da Quaresma do que em qualquer outro período.
Assim sendo, calculo que um ano depois da Quaresma os mercados
estejam mais abastecidos do que o normal, pois o número de crianças neste reino
é de, pelo menos, três papistas para uma protestante – o que oferecerá ainda a
vantagem colateral de reduzir o número de papistas entre nós.
Também já calculei as despesas para alimentar cada filho dos
pedintes (em cuja lista incluo todos os que vivem em barracas, trabalhadores rurais,
e quatro-quintos dos lavradores) que será de cerca de dois xelins per annum,
trapos incluídos. E creio que não incomodará nenhum cavalheiro pagar dez xelins por uma boa
carcaça de criança gorda, a qual, como já disse, dará quatro pratos de carne,
excelente e nutritiva, quando tiver apenas um amigo particular ou a sua própria
família a jantar consigo.
Assim o proprietário rural aprenderá a ser um bom senhorio, aumentando
a sua popularidade entre os seus rendeiros; a mãe terá uns oito xelins de lucro
líquido e estará apta a trabalhar até produzir outra criança.
Os que são mais frugais (como devo confessar que o exigem os
tempos) podem esfolar a carcaça, cuja pele, artificialmente tratada, dará luvas
admiráveis para as senhoras, e botas de Verão para os cavalheiros elegantes.
Quanto à nossa cidade de Dublim, podem destinar-se a este
propósito as secções mais convenientes, e os talhantes podem ficar descansados que não
terão falta de clientela. Embora eu antes recomende que se comprem as crianças
vivas, e sejam temperadas ainda quentes da faca, como o fazemos com os porcos.
Uma pessoa de muito mérito, um verdadeiro amante deste país
cujas virtudes grandemente estimo, andava ultimamente muito agradado a discursar
sobre este assunto, preocupado em acrescentar um refinamento ao meu esquema.
Disse-me que,
ultimamente, muitos cavalheiros do seu reino andavam preocupados com a destruição
dos seus veados, pelo que concebeu que a falta de proteínas poderia vir a ser
suprida pelos corpos de jovens rapazes e raparigas, não excedendo os catorze
anos de idade e nunca abaixo dos doze.
Havendo um grande número destes, de ambos os sexos, em todos
os países, atualmente prestes a morrer de fome por falta de trabalho e serviços,
poderiam ser dispensados pelos respectivos pais, se vivos, ou pelos parentes
mais próximos.
Mas, com a devida deferência para com um tão excelente amigo
e tão meritório patriota, não posso estar completamente de acordo com o ponto
de vista dele. Porque, no que diz respeito aos machos, o americano meu
conhecido assegurou-me, por experiências frequentes que, devido ao exercício
continuado, a carne deles era normalmente dura e magra como a dos nossos
jovens, e o seu gosto desagradável; e engordá-los não compensaria a despesa.
Penso que, no que respeita às fêmeas, com humilde submissão, seria uma perda
para o público, porque dentro em pouco se viriam a tornar elas próprias
parideiras.
Além disso, não é improvável que algumas pessoas
escrupulosas pudessem estar aptas a censurar uma tal prática (embora, na
verdade, muito injustamente), como tocando um pouco as raias da crueldade, o que,
confesso, tem sido sempre a minha mais forte objeção contra qualquer projeto,
por mais bem intencionado que seja.
Mas a fim de justificar o meu amigo, confessou ele que este
expediente lhe foi posto na cabeça pelo famoso Psalmanazar, um nativo da Ilha Formosa,
que daí veio para Londres há cerca de vinte anos e que, numa conversa, disse ao
meu amigo que, no país dele, quando acontecia que qualquer jovem pessoa fosse
condenada à morte, o carrasco vendia a carcaça a indivíduos de qualidade como
mercadoria de luxo.
E, no seu tempo, o corpo de uma gorda rapariga de quinze
anos, que tinha sido crucificada por ter tentado envenenar o imperador, fora
vendido do cadafalso, em partes, ao primeiro-ministro do estado de sua
majestade imperial, e a outros grandes mandarins da corte, por quatrocentas coroas.
Nem posso evidentemente negar que o reino não ficaria pior
se o mesmo tratamento fosse dado a várias jovens raparigas gordas desta cidade,
as quais nem uma simples moeda de prata têm por fortuna, mas que só saem à rua
de liteira, e aparecem nos teatros e assembleias em finas roupas estrangeiras
pelas quais nunca irão pagar.
Algumas pessoas de espírito atormentado ficam muito
preocupadas com o vasto número de indivíduos pobres que são velhos, doentes, ou
mutilados. E desejei dedicar os meus pensamentos ao caminho que pode ser tomado
para aliviar a nação de tão grave encargo. Mas não tive a menor dificuldade
quanto a esse assunto, porque é bem sabido que cada dia estão a morrer e apodrecer
com o frio e a fome, e a porcaria e as doenças, tão depressa quanto se poderia
razoavelmente esperar.
Quanto aos jovens trabalhadores rurais estão numa situação igualmente
esperançosa. Não conseguem arranjar trabalho e, consequentemente, definham por
falta de alimento com tal rapidez que, se em qualquer momento fossem
acidentalmente contratados para tarefas comuns, não teriam forças para as
executar. Assim, felizmente, o país e eles próprios ficam desembaraçados dos
males por vir.
A minha digressão
já vai longa, por isso regressarei ao assunto. Penso
que as vantagens da proposta que faço são óbvias e muitas, bem como da maior
importância. Porque, em primeiro lugar, como já constatei, iria diminuir grandemente
o número de papistas, com os quais estamos anualmente infestados, sendo estes
os principais procriadores da nação bem como os nossos mais perigosos inimigos.
E os que ficam em casa com o propósito de entregar o nosso
reino ao Inimigo, esperando obter os seus lucros com a ausência de tantos bons
protestantes, que escolheram antes abandonar o seu país do que ficar por cá e,
contra a sua consciência, pagar
impostos, e sustentar um curador episcopal.
Segundo, os rendeiros mais pobres terão algo de seu bem
valioso que, por lei, pode ser destinado a aliviar e pagar a renda aos seus
senhorios, já que o gado e os cereais lhes terão sido já tomados, e ser o
dinheiro uma coisa desconhecida.
Terceiro, enquanto a manutenção de cem mil crianças, com
dois anos e mais velhas, não pode ser computada a menos de dez xelins por
cabeça per annum, os recursos da nação seriam, por esta via, aumentados em cinquenta
mil libras per annum, além do proveito de um novo prato poder ser apresentado
às mesas de todos os cavalheiros de fortuna do reino com algum refinamento de
gosto. E o dinheiro circulará entre nós, sendo os bens inteiramente de nossa produção
e manufatura.
Quarto, os
procriadores constantes, além do ganho de oito xelins esterlinos per annum pela
venda de cada filho, ficarão livres do fardo de ter que os sustentar além do
primeiro ano. Quinto, este alimento iria igualmente trazer grande comércio às tabernas.
Aí, os taberneiros serão seguramente tão previdentes quanto a
procurar as melhores receitas para temperar a carne na perfeição e, consequentemente,
ver as suas casas frequentadas por todos os cavalheiros finos, que se avaliam
justamente a si próprios quanto ao seu conhecimento em boa comida: e um
cozinheiro habilidoso, que sabe como dar prazer aos seus convidados, arranjaria
maneira de a tornar tão cara quanto lhe apetecesse.
Sexto, isto seria um grande incentivo ao casamento, que
todas as nações sábias pretendem encorajar seja com recompensas, seja obrigando-o
com leis e penalidades.
Aumentaria o cuidado e ternura das mães para com os seus
filhos, pois ficariam seguras de terem arranjado um emprego para toda a vida para
os pobres bebês e, de certa forma, serem providas pelo público para o seu ganho
anual, em vez de terem despesas.
Veríamos uma emulação honesta entre as mulheres casadas,
sobre qual delas poderia produzir a criança mais gorda para o mercado.
Os homens ficariam
a gostar tanto das suas mulheres durante o tempo da
gravidez como gostam agora das suas éguas prenhas, das vacas com crias, das
porcas prontas a parir – nem se proporiam bater-lhes ou dar-lhes pontapés (como
é prática tão frequente) com medo de
um aborto.
Muitas outras vantagens poderiam ser enumeradas. Por
exemplo, a adição de cerca de mil carcaças à nossa exportação de carne salgada;
a propagação da carne de porco; e a melhoria da arte de fazer bom fiambre – tão
requisitado entre nós e demasiado frequente nas nossas mesas – a provocar a
destruição de porcos os quais, de modo algum são comparáveis em gosto, ou
magnificência, a uma criança de um ano, bem alimentada e gorda que, assada
inteira, faria bela figura numa festa do presidente da câmara, ou em qualquer
entretenimento público.
Mas esta e muitas outras omito, sendo um adepto da
brevidade.
* * *
* *
pesar de tudo, não estou assim tão fortemente agarrado à
minha opinião que rejeite qualquer oferta feita por homens sábios, que possa ser
considerada igualmente inocente, barata, fácil e eficaz.
Mas, antes que qualquer coisa desse tipo seja aventada em contradição
à minha proposta e oferecendo melhor, desejo ao autor ou autores que façam o
favor de considerarem atentamente dois pontos:
Primeiro, dado o
estado das coisas neste momento,
como serão capazes de encontrar comida e roupa para cem mil bocas e membros inúteis.
E, segundo, havendo
um milhão redondo de criaturas
com figura humana por todo este reino, cuja subsistência total posta em armazém
comum as deixaria com uma dívida de dois milhões de libras esterlinas –
adicionando os que são pedintes por profissão ao volume dos lavradores, aos
habitantes de barracas e trabalhadores rurais, com as mulheres e crianças que
são pedintes de fato: desejo a esses políticos que não gostam do meu projeto, e
podem talvez ser tão ousados quanto a tentar uma resposta, que perguntem
primeiro aos pais desses mortais se, neste momento, não achariam ter sido uma
felicidade enorme terem sido vendidos como alimento com um ano de idade da maneira
que proponho, e por essa via ter evitado uma cena perpétua de desgraças como
têm suportado com a opressão dos senhorios, a impossibilidade de pagar a renda,
estarem sem dinheiro ou negócio, terem a falta de sustento comum, sem casa nem
roupas para os cobrir das inclemências do tempo, e o mais inevitável prospecto
de acarretarem as mesmas misérias ou maiores sobre as suas crianças para
sempre.
Professo, na sinceridade do meu coração, que não tenho o
menor interesse pessoal em tentar promover este trabalho necessário, não possuindo
outro motivo além do bem publico do meu país e, pelo avanço do nosso comércio,
de prover pelas crianças, aliviar os pobres, e dar algum prazer aos ricos. Não
tenho crianças com as quais possa conseguir um único tostão, pois o meu filho
mais novo tem nove anos e a minha mulher está além da idade de procriar.
FIM