segunda-feira, 25 de julho de 2016

A doença saudável




Durante uma visita a uma loja de produtos naturais, a blogueira Jordan Younger, 25, entrou em pânico: o estabelecimento em Nova York não tinha o suco de vegetais que ela queria. Jordan passou cerca de 15 minutos em dúvida, analisando as opções disponíveis, enquanto suas amigas esperavam uma decisão – que não veio. Diante da angústia, ela sugeriu que fossem a outra loja da mesma franquia. As três andaram 1,5 km até o local onde Jordan, aliviada, encontrou a bebida. “Tinha pavor de comer ou beber algo que não havia planejado. Eu precisava de comida e não me permitia comer por 5 bilhões de motivos, que são difíceis de explicar”, desafabou em seu blog, então voltado ao veganismo.

No post, a norte-americana descreve o ponto alto da angústia causada por um distúrbio ainda pouco conhecido: a ortorexia nervosa. O problema aparece quando a preocupação em comer de forma correta vira obsessão – inclusive com características de TOC (transtorno obsessivo compulsivo). Ao contrário da anorexia ou bulimia, que visam exclusivamente a relação com o peso, o foco da ortorexia é totalmente voltado à saúde – que pode resultar em perda de peso, mas o objetivo é sempre estar “puro”. Uma ideia fixa que leva a frase "que seu remédio seja seu alimento e que seu alimento seja seu remédio" a um ponto ironicamente doentio.

“Só me sentia confortável em comer vegetais, batata doce, quinoa e, ocasionalmente, suco verde com um pouco de banana”, contou Jordan ao TAB, sobre o processo em que o ortoréxico restringe mais e mais sua alimentação, até que se conte nos dedos (e de uma única mão) os componentes do cardápio. A “bolha de restrição” segue uma lógica diferente para cada paciente, que se apodera do tom médico em suas justificativas: esse alimento dá alergia, aquele atrapalha a digestão, o outro reforça a asma. 

A vida e o pensamento do ortoréxico giram em torno da comida, a ponto de a alimentação definir sua autoestima e seu valor pessoal. Enquanto o anoréxico nunca se vê magro o bastante, o ortoréxico nunca se sente puro o bastante – e acha que a solução pode estar naquilo que ingere. A forma como ele come é mais importante do que trabalho e vida pessoal. Outra interpretação extrema, agora de outra máxima: “você é o que você come”.

BATALHA INTERNA

“Não chega a ser uma questão de saúde pública. Mas estamos em um surto de ortorexia, como ocorreu nos anos 80 durante a onda macrobiótica [que prega o consumo de cereais integrais, grãos e vegetais para manter o bem-estar físico e emocional]”, afirma Eduardo Aratangy, médico supervisor do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

A instituição não divulga o número de casos tratados, porém algumas características são comuns entre os pacientes: sexo feminino, entre fim da adolescência e 25 anos, muito preocupadas com o corpo, moradoras de ambiente urbano e de classe econômica elevada. “Esses traços favorecem, mas não determinam a existência da patologia. Se não, seria como dizer que todo apreciador de cerveja tem problemas com álcool”, afirma Aratangy.

O principal desafio em lidar com a ortorexia está justamente na máscara dos hábitos saudáveis – o distúrbio vem em uma embalagem cheia de vantagens e tem grandes chances de agradar, quando o legal é ter um #estilodevida baseado nas hashtags #clean #orgânico #comidasaudável e #foco, para citar alguns poucos exemplos.

No caso da ortorexia, a qualidade dos alimentos ingeridos não tem impacto só no corpo, mas também na identidade, fazendo com que a pessoa se sinta superior aos demais por seguir sua dieta à risca. Em contrapartida, qualquer falha - desde a ingestão de uma única uva passa até uma pizza inteira seguida por um pote de sorvete - leva à punição: um cardápio ainda mais restrito e até períodos de jejum para desintoxicar. Afinal, no pain, no gain.

Hashtags e frases motivadoras movem o mundo fitness na rede social Instagram, “a melhor plataforma para estudar distúrbios relacionados ao corpo”, como define Joana Novaes, psicanalista e coordenadora do núcleo de doenças da beleza da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio). “Muitos não se dão conta do problema, porque acreditam ser e parecem ser saudáveis. Ganham aplausos, são vistos como disciplinados, viram alvo de admiração. O distúrbio só fica evidente quando o ortoréxico passa a evitar relacionamentos, lugares e eventos que não lhe garantem o controle sobre a procedência e o preparo da comida”, afirma.

Segundo Joana, é isso que diferencia a preocupação em ser saudável (seria melhor comer tal coisa) de uma patologia (só como se for tal coisa). Por causa da obsessão – “eu mesmo vou à feira”, “eu mesmo escolho o tomate orgânico”, “eu mesmo o preparo”, “o que exatamente tem nesse suco?” -, especialistas colocam a ortorexia sob o guarda-chuva do TOC e não de outros distúrbios alimentares, apesar de haver características em comum. Outro agravante nessa intensa perseguição da saúde pode vir da prática de exercícios físicos, que os ortoréxicos associam cada vez mais a seus cardápios restritos, criando assim o falso combo do bem-estar.

Era este o caso de Kate Finn, que ganhava a vida como instrutora de ioga nos Estados Unidos e mantinha uma dieta à base de vegetais crus, frutas, grãos e sementes. A combinação fez com que ela perdesse muito peso e fosse diagnosticada com anorexia quando chegou aos 43 quilos. "Me sentia incompreendida. Pensavam que eu tinha medo de ficar gorda, mas meu foco em todas as dietas que experimentei era ser saudável", escreveu. 

Ao ler um artigo sobre ortorexia, Kate Finn se identificou com os sintomas e passou a tratar o problema, buscando equilíbrio na alimentação. O esforço não bastou: morreu em 2003, aos 37 anos, vítima de uma parada cardíaca associada a seu corpo debilitado.

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