Francisco Espiridião
Era 1981. Ele lembra bem a data. Foi o ano em que nasceu sua segunda filha. Ela, ainda na barriga da mãe, era o seu maior trunfo para barrar o processo de transferência que o Comando lhe impunha.
Estava com um pé no interior do estado, ainda território federal, mas, mesmo assim, tinha esperança. Na última hora, outro seria jogado aos leões no seu lugar. Afinal, ainda não havia saído a implacável publicação no Boletim Geral.
A temeridade tinha razão de ser. Transferido para o interior, o PM não recebia nada de vantagem. Só problemas. E de toda sorte. Principalmente na terra de faroeste para onde estavam lhe mandando.
Um dos distritos de maior índice de violência. Um antro de matadores. Um morria hoje assassinado e outro ficava amarrado para morrer no dia seguinte. Hoje já mudou muito. De inferno transformou-se em paraíso.
Mas não teve jeito. O Comando ignorou solenemente a barriga de sete meses da esposa. A menina, hoje soldado PM, que desse seu jeito para nascer. Com ou sem maternidade por perto.
O pior era a pindaíba que ditava as regras. Ele havia avalizado um empréstimo para um colega de farda. Antes do final do prazo de pagamento, o danado deu à louca, pediu baixa do quartel e escafedeu-se de Boa Vista.
Quase a futura Sd PM nascia sem cueiros (argh, que nome! Mas era assim que se chamavam as fraldas, antigamente). Hoje é tudo moderno. Tem até as descartáveis. Para conseguir um empréstimo em banco não se precisa mais “queixar” ninguém para ser avalista. Inventaram o tal do empréstimo consignado. Já sai tudo descontado na folha de pagamento.
O certo é que, em determinado final de tarde de março, estavam eles – o sargento PM (autoridade, ora veja), a mulher com a barriga no pé da goela e a filha mais velha, de seis anos –, tomando posse de uma das três casas destinadas à Segurança Pública (Polícia Civil e Militar) naquele lugar inóspito.
Sem qualquer amigo a cercar-lhes, contavam apenas com a solidariedade do cabo (hoje sargento da reserva) e dos soldados a seu comando, entre eles, o Cacheado (cabelo mais espetado impossível), que hoje é sargento. Ainda na ativa.
A mudança, em cima de um caminhão da PM, foi feita na base de muito choro. Estrada de chão. Costela de vaca era o que não faltava. O prejuízo, nem se fala. Ao descer os quase-nada, era uma quebradeira só. Guarda-roupa com porta caída, cômoda sem perna, panela amassada...
Foi aí que ele teve a primeira experiência pessoal com o brigadeiro Ottomar Pinto. Havia poucos dias de instalado simultaneamente nos postos de comandante do destacamento PM e subdelegado de Polícia (com as funções de titular), recebe pelo rádio uma informação importantíssima.
O Governador (biônico, mas governador) desembarcaria às 10 horas no campo de pouso da cidade (tudo bem, Vila) para uma visita normal de inspeção. Havia, portanto, pouco menos de meia hora para os preparativos da pomposa recepção.
Tudo precisa sair dentro dos padrões castrenses recomendados. Determinação expressa do Comando. Não perdeu tempo. Mandou todos – o cabo e os soldados, exceto o permanência de dia do Destacamento – vestirem a melhor farda, engraxar o coturno e limpar o cinto. Na hora do desembarque, estavam todos a postos. Em forma.
Mal o Governador bota o pé em solo firme:
– Atenção guarda! Sentido! Ombro armas! Apresentar armas! Permissão, Excelência! Terceiro-sargen...
Ottomar sequer deixou que ele terminasse a apresentação.
– O que foi que eu fiz para ser preso – indagou, em tom de arraigada ironia. Afinal, ele, militar de alta patente que era, conhecia o procedimento.
A resposta foi instantânea:
– Sim, senhor. Guarda! Ombro armas! Descansar armas! Fora de forma, marche!
Nunca mais foi receber sua excelência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário