quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Longo percurso para se chegar a Boa Vista (1)

15 de março de 1974. Cinco da tarde de um dia meio chuvoso. Meto a mão nos bolsos e confiro. Os documentos e o bilhete da passagem. Tudo em ordem. A reboque, a mala, mais conhecida como “cachorrinha”, daquelas que já não se fazem mais. De papelão. Quase cheia, pesava quase nada.

Com a vista, meu pai examina cuidadosamente a embarcação em busca de um lugarzinho discreto. Chamávamos de batelão. No Amazonas, navio-motor (NM). Imponente. A cabine elevada do comandante dava o tom. Encontra. Nele, ata a minha rede. A largada, marcada para as 18h, não queima.

Nenhum irmão para fazer o bota-fora. Meu pai, sozinho, abençoa-me. Faz um gesto de quem, mesmo antes de cortar o cordão umbilical, já está morto de saudades. Perpassa-me a cabeça um turbilhão. Lembranças de momentos gostosos. Farras como só ele sabia fazer com os onze filhos. Nove legítimos, dois, melhor, duas, adotadas.

Aos dezenove de idade, cortar laços, antes, uma única vez. Em 1973. Coisa rápida. Um curso de três meses nos Correios da Praça Saenz Penha, Rio. E agora... Rede armada, cachorrinha ao lado. O coração que era a personificação do “banzo”. Ida sem volta. Quatro dias rio abaixo. Sozinho nesse mundão de Deus.

Destino, Bahia. Era lá o burburinho. Por lá, tudo acontecia. Tropicália, Novos Baianos... Despontavam Caetano, Gil, Betânia... Por aí se vê quanto eu fui mau aluno de Geografia. Queria ir para a Bahia. Em vez de descer em transversal, rumo a nordeste, subi, na rota do norte. De Porto Velho para Manaus.

Banzo. Em uma viagem daquelas dá para experimentar o que os negros africanos sentiram ao ser degredados para o Brasil. Raras exceções, o transcurso todo se fazia por região desabitada. Dias vendo só água, mato e beiradão de rio desbarrancado. À noite, o piscar de vaga-lumes. Ler não dava tanto prazer assim. Nostalgia mortal!

Eis que, por volta das 2h da madrugada da quinta jornada, avista-se ao longe algo como luzes da ribalta. Não era miragem. Era a capital amazonense dando o ar da graça. Daí, mais três horas de tu-tu-tu-tu-tu no pé do ouvido. Mas o que são três horas para quem está iniciando o quinto dia de desventura?

(Segue no próximo capítulo)

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