Francisco Espiridião
"Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes!".
Calma! Não se precipitem. A frase que abre esta crônica está sim, escrita em bom português. Aliás, bom até demais. Tão bom, a ponto de se justificar um certo "frisson" com relação a que se faça, e logo, a sua tradução. É isso que passo a fazer agora.
Trata-se de um fragmento de texto pinçado da "Carta pras Icamiabas", inserto no Capítulo IX da obra-prima de Mário de Andrade, "Macunaíma - O herói sem nenhum caráter", escrita em 1928.
Nascido no "fundo do mato virgem" (cafundós de Roraima), Macunaíma (cá para nós, Macunaima) despede-se de suas súditas, as Icamiabas. Deixa sua terra, triste que estava com a morte de sua amada Ci, a "Mãe do Mato", com quem se envolveu em "calientes" idílios, nascendo daí um curumim, que morre após mamar um único peito de Ci.
Nessa retirada sem rumo, Macunaíma encontra Capei, um "monstro fantástico", que abria a goela e soltava uma nuvem de marimbondos. Em luta renhida contra Capei, Macunaíma perde seu talismã.
Descobre mais tarde que sua pedra predileta havia sido engolida por uma tartaruga que fora apanhada por um mariscador e a vendera para um rico fazendeiro chamado Venceslau Pietro Pietra, dono de uma mansão em São Paulo. É para lá que o nosso herói se dirige, a fim de reaver seu precioso bem.
Em lá chegando, descobre aquele mundão novo e completamente louco. Louco e grande. De frios prédios espichados rumo ao céu, separados por estreitas ruelas. Escondendo em suas entranhas a prática constante de amores pecaminosos.
Então, resolve relatar tudo às suas súditas por aqui deixadas, as Icamiabas. É quando tece a frase que abre estes escritos, falando de um local nada diferente do Brasil de hoje, onde a dengue, a febre amarela, entre outras, representam cabalmente o "morbo" (estado patológico, doença, segundo o Aurélio).
Os miriápodes (embuás e lacraias) podem muito bem representar a classe política - honrosas exceções -, encarnada na falta de sinceridade com as palavras, fato em que o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, é useiro e vezeiro. Veja-se suas rasgadas verborragias.
A mais nova, vociferada esta semana: "As elites 'derrubaram' Severino Cavalcanti da Presidência da Câmara Federal". Não se sabe a quem Lula quis enganar, desta vez.
Na verdade, Cavalcanti renunciou à Presidência daquela Casa, acuado pela comprovação de que recebia havia muito o "mensalinho", pago coercitivamente pelo dono de um restaurante do Congresso.
Ou pela falta de sinceridade nas ações, representada pelo "roubo" do texto de um projeto de Lei apresentado por um deputado na Câmara, ano passado, e transformá-lo, ipsis literis, em Medida Provisória, sem trocar nem as vírgulas. O caso da MP assinada nesta terça-feira, que autoriza a regularização de terras na Amazônia de até 1.500 hectares.
Infelizmente, nós, brasileiros, somos todos Macunaíma, heróis sem nenhum caráter. A começar por Sua Excelência, o nosso Presidente.
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